sábado, 28 de setembro de 2013

GERMINAL



Passou. A vida é assim: é o temporal que chega,
Ruge, esbraveja e passa, ecoando, serra a serra,
No furioso raivar da indômita refrega
Que as montanhas abala e os troncos desenterra.

Mas o pranto, afinal, que essa cólera encerra
Tomba: é a chuva que cai e que a planície rega;
E a cada gota, ali, cada gérmen se apega
Fecundando, a minar, toda a alagada terra.

Também o coração do convulsivo aperto
Da dor e das paixões, das angústias supremas,
Sente-se livre, após, a um grande choro aberto.

Alma! já que não é mister que ansiosa gemas,
Alma! fecunda enfim nas lágrimas que verto,
Possas tu germinar e florescer em Poemas!


Emílio de Menezes






IMAGEM



Uma pobre velhinha franzida e amarelada
sentou-se num banco, em Paris.
A tarde cinzenta andava atrás dela
como um triste gato de feltro e flanela,
igualmente exausta e infeliz.
Entretanto, aquela cidade, aquela
é a maior do mundo, segundo se diz.
E não só maior – mas alegre e bela:
é a cidade chamada Paris.

Por que há uma velhinha tão triste e amarela
sentada num banco em forma de X?
Nunca vi ninguém mais triste do que ela,
em tarde nenhuma de nenhum país.

Nas mãos, uma chave – de que bairro, viela,
porta, corredor, mansarda, canela? –
com um desenho de flor-de-lis.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O BRANCO



Existir na realidade,
Crescer no invisível da voz imóvel,
Ouvir dentro de si gestos que cantam,
Forças que comandam movimentos,
Sentir o imponderável tombado sob os pés,
Ver a luz que dissolve todos os inícios
Intensamente iluminando o pensamento morto.
Existir na irrealidade,
No esquecimento de todas as coisas entendidas
Quebrando os ossos que nos fazem eretos,
Perscrutando todos os desejos que já são alheios.
No branco espesso da irrealidade
Permanecer no vácuo, depois altura, depois fogo e depois nada.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

SIMPLICIDADE



Vida no vento,
Vida na rosa,
Vida no fogo,
Vida na pedra,
Vida na água,
Vida na luz,
Vida no pranto,
Vida no húmus,
Vida na vida do amigo,
Vida no silêncio,
Vida na angústia,
Vida no mistério da criança,
Vida na vida
Cantando, cantando sempre
Na infinita vida da morte.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

VIA-LÁCTEA SONETO XXVIII



Pinta-me a curva destes céus... Agora, 
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma: 
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma, 
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora. 

Solta, ondulando, os véus de espessa bruma, 
E o vale pinta, e, pelo vale em fora, 
A correnteza túrbida e sonora 
Do Paraíba, em torvelins de espuma. 

Pinta; mas vê de que maneira pintas... 
Antes busques as cores da tristeza, 
Poupando o escrínio das alegres tintas: 

— Tristeza singular, estranha mágoa 
De que vejo coberta a natureza, 
Porque a vejo com os olhos rasos d′água. 


OLAVO BILAC 
In Poesias

terça-feira, 24 de setembro de 2013

49



Quando as crianças brincam
E eu oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
 
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda da alegria
Que não foi de ninguém.
 
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Que ao menos quem sou sinta
Isto no coração.

 
Fernando Pessoa
In Antologia Poética

SE EU PUDESSE...




Se eu pudesse
Ser como as gaivotas,
Transpor ares e mares,
Libertar-me dos antolhos,
De míseros preconceitos
Que os homens cheios de malícia,
Explorando a sua inteligência,
Resolveram criar...

Se eu pudesse,
Voar como os pássaros ligeiros,
Livres de gaiolas,
Em busca da liberdade,
Descobrir novos lugares,
Longe deste mundo bitolado,
Deste velho mundo transtornado,
Minado pelo egoísmo e arestas,
Mundo de falsos profetas,
Crenças e promessas,
Encontrar o reino da fantasia,
Da paz eterna e duradoura,
Livre das lutas e do ódio...
Se eu pudesse.
Voar e encontrar o reino da Poesia,
Que feliz seria eu,
Mas se eu pudesse,
Talvez a alegria e a felicidade
Seriam as minhas companheiras
E eu me tornaria o mais feliz
De todos os homens sobre a terra...


Olympiades G. Corrêa
- In Eterna Procura

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

MINIATURA



Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também...
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente.

Miguel Torga
In: Antologia Poética

domingo, 22 de setembro de 2013

FARRA DAS CORES



A Primavera se avizinha:
raízes e letras
exigem sua hora e tempo.

Caminho pelo jardim.

Espinhos do alfabeto,
Azaléias da alma insone.

Caminho entre seixos.

Busco o perfeito aquário,
Onze-horas e algas
orientam os peixes.

Pedras, nuvens e letras noir.
Tudo anuncia a Primavera:
discreta, Almíscar, esperta.

Em torno dos homens
entorna suas flores, perfume,
brisa, maresia e malícia.

Palavras azuis sobre o mar.
Sobre o marfim, música,
frases, orquídeas raras.

II

A Primavera caminha anônima
como homens e mulheres na rua,
afoita com tantas luas.

A Primavera espraia
graça entre samambaias,
escala buganvílias, assanha roseiras.

Espio, solene, sapos e flores;
espreito folhagens, livros antigos.

Refaço e traço veredas,
espelho versos contra o sol.

Entre seios de nuas mulheres,
abrigo meus olhos úmidos:

Vermelhos antúrios
em fins de madrugada.

Calculo frações primas e veras;
pernas, seios, trepadeiras e lírios.

Estrelas avessas da manhã,
casuarinas de sonhos.


III

A Primavera se avizinha:
enlouquece românticos e céticos,
com sua farra de cores;
seu derrame de felicidade.


Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"




sábado, 21 de setembro de 2013

JOSÉ SARAMAGO



"Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas 
épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos
como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas,
arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para
que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma 
tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos
a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim 
de sessenta segundos..." 

José Saramago, 
in "As Pequenas Memórias"







sexta-feira, 20 de setembro de 2013

HAICAI



Nos ramos das árvores
a primavera passeia.
Desabrocha a vida.


Delores Pires,
in Estações

PRIMAVERA



A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu
 nome,nem acredite no calendário, nem possua jardim 
para recebê-la.
A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os 
habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda 
circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua
 vida para a primavera que chega.
 
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da 
terra,nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos
 sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de
 nascer,no espírito das flores.
 
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos
cor-de-rosa,como os palácios de Jeipur. Vozes novas de 
passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua
nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se
pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que
não se entende.
 
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno,
quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente,
e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
 
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as
árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os
humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores,
com vestidos bordados de flores,com os braços carregados de
flores, e vem dançar neste mundo cálido,de incessante luz.
 
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não
se esquece,e a terra maternalmente se enfeita para as
festas da sua perpetuação.
 
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia,
talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no
momento que quiserem,independentes deste ritmo, desta 
ordem, deste movimento do céu.E os pássaros serão outros,
com outros cantos e outros hábitos,— e os ouvidos que por
acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que,
outrora se entendeu e amou.
 
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos
atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão
beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam
nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda 
conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo
tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai
tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. 
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo 
enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam
com suas roupas de chita multicor.
 
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser 
lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente,
ao que vem, na rotação da eternidade. 
Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
 
 
 
"Cecília Meireles,
in Obra em Prosa - Volume 1",

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

IMAGEM



És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...

A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...


Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas 


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

UM BRILHO QUASE FATIGADO



Anda uma claridade esquiva
a rondar-nos a casa.
De encontro às vidraças,
um brilho quase fatigado
vai abrindo a noite
à transparência do olhar.

Graça Pires
De A incidência da luz

HORÁRIO DO FIM



morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento


Mia Couto

terça-feira, 17 de setembro de 2013

DIFÍCIL ALQUIMIA



"Oitenta anos daqui a poucos dias.
Parece muito. É imenso, não é nada.
Ínfimo grão de pó no pó da estrada.
Raminho de Tristezas, de alegrias.

Crepusculares, doces alegrias.
Por vezes, dolorosa a caminhada,
mas sempre, após a noite, a madrugada.
Cantos de rouxinóis, de cotovias.

De tudo um pouco, assim é que é a vida
se a queremos inteira, bem vivida,
às vezes vendaval, outras bonança-

Bem e mal, noite e dia, riso e dor.
Difícil alquimia: espinho e flor,
mas sempre aberta a porta da esperança."


Fernanda de Castro
in, Poesia II

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

HÁ DIAS EM QUE TUDO É SEM REMÉDIO



"Há dias e que tudo é sem remédio,
em que tudo começa e acaba torto.
Uma folha caiu:
era um pássaro morto.

Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono.
Nada nos fala, nos atrai, nos chama.
Choveu, parou a chuva,
ficou, porém, a lama.

Um banco no jardim. Árvores nuas,
um cisne velho, um tanque, água limosa,
nem a relva ficou,
quanto mais uma rosa.

Há barcos, há gaivotas sobre o rio,
e nas ruas há gente, há muitas casas.
Mais um dia perdido:
arrancaram-lhe as asas."


Fernanda de Castro,
In «Urgente»

domingo, 15 de setembro de 2013

'O AMOR'



O amor é frágil
O amor é humilde
O amor é claro
O amor é simples
O amor se vai
Foge e se perde
Subitamente
De repente
O amor é insólito
E inseguro
Surge e se esvai
É cinza 
É ouro
É ardência, é fogo
E é nada


Augusto Frederico Schmidt
In Um século de poesia

'PRIMAVERA I'



VEREI A PRIMAVERA se encaminhar com o seu chapéu de 
palha e o seu róseo vestido
Pelas ruas amigas, perto da casa em que mora.
Verei o teu rosto se tingir com a poeira dos ocasos
E tuas mãos morenas se balançarem tênues sob a água das cascatas
Longe das ingratidões, das lutas, dos equívocos de todo dia.
Os cisnes se confiarão como nos tempos calmos.
As violetas distantes sorrirão com as terras úmidas e grávidas.
Os pássaros, os ninhos vão cantar!
Verei chegar o teu vestido e te confundirei com a Primavera.
Seguirei com a Primavera pelas ruas.
Os circos vão pousar como pássaros enormes.
Primavera! Primavera!
O amor vai renascer nos campos
E as amadas dormirão cobertas pelos azuis sem fim.


Augusto Frederico Schmidt
In: UM SÉCULO DE POESIA

sábado, 14 de setembro de 2013

EU!



O homem de gênio diz: eu sou.
O poderoso afirma: eu posso.
O rico diz: eu tenho.
E o ambicioso: eu quero.
Eu ! Eu ! Eu !
E afinal
esses que vivem sós,
completamente sós,
quanto dariam para como tu,
ou como eu,
dizerem simplesmente: nós.

Fernanda de Castro
em Trinta e Nove Poemas


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

OS OLHOS DAS CRIANÇAS



Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem atrás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidónio Muralha
In ‘Os Olhos das Crianças’

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

SOMOS INOCENTES


A parte dura desta humana lida
é dizer sim na hora do não,
escolher mal entre silêncio e grito,
entre a noite e a explosão
do dia.

Ceder quando devíamos negar, dizer
não em lugar de afirmar, partir
quando era bom amar, fechar-se
em vez de resgatar
a vida.

Sermos tão incertos e indecisos,
perdendo o trem, a hora,
o agora: mas a gente
não sabia.

Lya Luft
In Para não dizer adeus.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

MATURIDADE



Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

CANÇÃO EM ROTA DE VÔO



" Antes os dias eram apenas dias :
perdas e ganhos , tarefas cumpridas ,
solidão e algumas alegrias .
Agora , objetos familiares
ganham contornos de sonho ,
palavras são aves do paraíso ,
o cotidiano virou do avesso
e se tornou milagre .

Quero um novo amor , tão leve
como se dançasse numa praia uma menina ."

Lya Luft ,"in
Secreta Mirada

O CONVITE


 
Não sou areia
onde se desenha um para de asas
ou grades diante de uma janela.
não sou apenas a pedra que rola
na marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou mistério.
A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos a sério.
 
 
Lya Luft
IN "Perdas & Ganhos"

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

AFERIDOR



"Tenho um aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
o meu aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
o aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
o meu aferidor deu
d - e - s - e - n - c - a - n - t - o

(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)"

Manoel de Barros






CATILINA



Eu sou o solitário e nunca minto.
Rasguei toda a vaidade tira a tira
E caminho sem medo e sem mentira
À luz crepuscular do meu instinto.

De tudo desligado, livre sinto
Cada coisa vibrar como uma lira,
Eu - coisa sem nome em que respira
Toda a inquietação dum deus extinto.

Sou a seta lançada em pleno espaço
E tenho de cumprir o meu impulso,
Sou aquele que venho e logo passo.

E o coração batendo no meu pulso
Despedaçou a forma do meu braço
Pra além do nó de angústia mais convulso.


 Sophia de Mello Breyner Andresen
In Poemas escolhidos













A DOR TEM UM ELEMENTO DE VAZIO


 
A Dor - tem um Elemento de Vazio - 
Não se consegue lembrar 
De quando começou - ou se houve 
Um tempo em que não existiu - 
 
Não tem Futuro - para lá de si própria - 
O seu Infinito contém 
O seu Passado - iluminado para aperceber 
Novas Épocas - de Dor. 
 
Emily Dickinson,
in "Poemas e Cartas" 
Tradução de Nuno Júdice












MANOEL DE BARROS



E, aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.

Manoel de Barros
in Poesia Completa






domingo, 8 de setembro de 2013

OUTRO LUGAR



A verdade que pertence aos gestos
Ao menor dos gestos
Antes de chegarem palavras que nos socorram
Às vezes é a verdade de um amor

Escassos propósitos as palavras
Para o abalo de terra
Em que se tornou de repente
A nossa vida

Um sofrimento não nos larga
A manhã parece-se estranhamente
Com outro lugar
Saberemos então que significam
Os intervalos do silêncio
Onde o silêncio é maior


José Tolentino de Mendonça
in A noite abre meus olhos, 2006

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

OS TEMPOS SÃO TRÊS...


.
Os tempos são três: 
presente do passado, 
presente do presente 
e presente do futuro.
Esses três tempos estão na minha alma
e não os vejo em outro lugar. 
O presente do passado é a memória;
o presente do presente, a percepção imediata;
o presente do futuro, a espera.

Santo Agostinho
IN As Confissões



quinta-feira, 5 de setembro de 2013

MELHORIA



Roubaram-me o medo.
Pintaram-no de cor-de-rosa
e purpurina.
Deram-lhe cetins de bailarina
e babado carmim de melindrosa.

Perfumada a essência em alecrim,
diluiu-se todo em transparência.
Entre sedas e doces rebuçados
evapora-se a tônica do medo
em irônica massa de brinquedo.


Flora Figueiredo,
in Florescência

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

CAIO FERNANDO ABREU



Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar.
A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos 
sedentas e pensa: Achei! Achei!
Mas ele escorrega se espatifa em mil pedaços, como um
 vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de 
louça.A gente fica só, outra vez, e tem que começar 
do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos
 que vê. Cada um que surge parece o último, mas todos são de
 barro, quebram-se antes que possamos reformular as
 perguntas.E começamos de novo, mais uma vez, dia após
dia, ano após ano.Um dia a gente chega à frente do 
espelho e descobre: Envelheci!Então a busca termina.
As perguntas colam no fundo da garganta, e vem a morte.
Que talvez seja a grande resposta.
A única.


Caio Fernando  Abreu 
em Limite Branco

terça-feira, 3 de setembro de 2013

OS NASCIMENTOS



Nunca nos recordaremos da nossa morte.

Tão pacientes famos
para sermos
que anotámos
os números, os dias,
os anos e os meses,
os cabelos ,as bocas que beijámos,
e aquele minuto antes de morrer
deixá-lo-emos sem anotação:
damo-lo a outros de lembrança
ou simplesmente à água,
à água, ao ar, ao tempo.
E de nascer tão-pouco
guardámos a memória,
ainda que importante e jovial
tenha sido a nossa vida:
e agora não te lembras sequer
do mais pequeno pormenor,
não guardaste sequer um ramo
da primeira luz.

Sabe-se apenas que nascemos.

Sabe-se que na sala
ou no bosque
ou no palheiro do bairro piscatório
ou nos canaviais rumorejantes
há um estranho e profundo silêncio,
um minuto solene de madeira
e uma mulher que vai parir.

Sabe-se apenas que nascemos

Mas da profunda agitação
de não ser para existir, para ter mãos,
para ver, para ter olhos,
para comer e chorar e despojar-se
e amar, amar, e sofrer, sofrer,
daquela transição ou calafrio
do conteúdo elétrico que um corpo
toma para si como se fora uma taça viva,
e daquela mulher desabitada,
a mãe que ali fica com seu sangue
e a sua dilacerada plenitude,
com o seu fim e princípio, e a desordem
que altera o pulso, o chão, os cobertores,
até que tudo se recolhe e mais

um nó é dado com o fio da vida,
nada, não ficou nada na tua memória
do mar bravio que ergueu uma onda
e derrubou da árvore uma maçã sombria.

Não tens mais recordações que a tua vida.


Pablo Neruda
In Pleno Poderes

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

BERNARDO SOARES



(…)
.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre,
pois, não sendo mais, nem querendo ser mais,
que um espectador de mim mesmo,
tenho que ter o melhor espectáculo que posso.
Assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, palco falso, cenário antigo,
sonho criado entre jogos de luzes brandas
e músicas invisíveis.
.
(…)
.
Bernardo Soares
In Livro do Desassossego

domingo, 1 de setembro de 2013

O SEMPRE AMOR



Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
sou de pedra-sabão.
Alegre ou triste,
amor é coisa que mais quero.

Adélia Prado
In Bagagem