terça-feira, 30 de setembro de 2014

ASSOMBROS




Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.

Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.


Affonso Romano de Sant'Anna 
em ‘Lado Esquerdo do Meu Peito’

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

RECEITA PARA DIAS DE CHUVA



dia de chuva é para viajar
na neblina e no vento
para dentro para dentro

um livro fechado espera
que se abram suas portas
com as chaves do pensamento

Roseana Murray
In ‘Receitas de Olhar’ (1997)


sábado, 27 de setembro de 2014

SONETO AZUL



Gosto de barro na manhã molhada
sem voz de locutor, sem propaganda.
Apenas riso de criança e em cada
janela uma fraqueza de varanda.

Disposição no corpo livre e na alma
o pavor de perder o que mais louvo,
que é esta imprevista sensação de calma
e esta vontade de nascer de novo.

Cheiro de lápis, livros novos, no ar
repassa a infância – admitamos – ou
que outro menino risca os mesmos muros?

Manhã azul, no céu azul, no mar
azul, cheio de velas, como estou,
de velas brancas (ou desejos puros).

1949


Lago Burnett
In: Estrela do Céu Perdido

POESIA PURA


Foto by Claudio Pereira

Um lampião de esquina
Só pode ser comparado a um lampião de esquina,
De tal maneira ele é ele mesmo
Na sua ardente solidão!

Mario Quintana ,
de Apontamentos de História Sobrenatura

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

PEQUENA IGREJA



Eu queria louvar-te, pequena e humilde igreja
Desta cidadezinha que está morrendo.
Eu queria agradecer-te a compreensão que me deste
Das coisas humildes e eternas.

Eu queria saber cantar a tua tranqüilidade
E a tua pura beleza,
Ó igreja da roça, adormecida diante do jardim cheio de rosas!
Ó pequena casa de Jesus Cristo, irmã das outras casas solenes
e graves.
Escondida e modesta, com as tuas torres e os teus sinos
Que sabem encher o ar matinal com um tão doce apelo,
E no instante vesperal lembram que é hora de dormir para a
grande família dos passarinhos inquietos,
Dos passarinhos que tumultuam o pobre jardim cheio de flores!

Augusto Frederico Schmidt
In ‘Estrela solitária’ (1940).

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

SONETO



Só preciso de poesia.
Não quero mais nada,
Não quero sorrisos,
Nem luxo, nem fama,

Nem bruxas, nem bodas
nem gritos de guerra,
Nem doidos volteios
Nas danças sensuais.

Só aspiro poesia. Poesia
E silêncio. No mundo fechado,
No escuro do tempo.

A luz da poesia é como a semente
Que na terra morre e logo apodrece,
E na vida renasce em flores e frutos.


Augusto Frederico Schmidt
In Um século de Poesia

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

PRIMAVERA II




Dia para quem ama
Dia límpido e claro!
O azul do céu, o azul da terra, o azul do mar!
Dia para quem é feliz e sem tormento
Dia para quem ama e não sofre de amor!
Dia para as felicidades inocentes.

Em mim, a mocidade acordou violentamente
Porque o sol expulsou as trevas e inundou-me!
Uma pulsação de vida enche meu ser doentio e incerto.

Vejo as águas correndo
Vejo a vida e o espaço
Vejo as matas e as grandes cidades líricas
Vejo os vergéis em flor!
É a primavera! É a primavera!
Desejo de tudo abandonar e sair cantando pelos caminhos!

Augusto Frederico Schmidt
In: UM SÉCULO DE POESIA

domingo, 21 de setembro de 2014

A ÁRVORE



Ó árvore, quantos séculos levaste 
a aprender a lição que hoje me dizes: 
o equilíbrio, das flores às raízes, 
sugerindo harmonia onde há contraste? 

Como consegues evitar que uma haste 
e outra se batam, pondo cicatrizes 
inúteis sobre os membros infelizes? 
Quando as folhas e os frutos comungaste? 

Quantos séculos, árvore, de estudos 
e experiências — que o vigor consomem 
entre vigílias e cismares mudos — 

demoraste aprendendo o teu exemplo, 
no sossego da selva armada em templo? 
Dize: e não há esperança para o Homem? 


Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES...



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

 Luís Vaz de Camões,
in "Sonetos"

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

NÃO POSSO ADIAR O AMOR




Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa,
 in "Viagem Através de uma Nebulosa"






domingo, 14 de setembro de 2014

A SOLIDÃO...




“A solidão não nos condena,
não nos culpa, não nos cobra.
Antes, nos redime e nos realimenta. 
E, nos momentos em que nos visita,
recupera-nos em identidade
com todo vento que sopra,
todo riacho que murmura, 
toda luz que enternece.
A solidão é isto: 
a lembrança de um outro mundo,
 um universo que acontece”.

Fernando Campanella

sábado, 13 de setembro de 2014

O LADRÃO DE VERSOS




Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingênuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Rui Knopfli — Mangas Verdes com Sal
“in” Antologia Poética – Poetas de Moçambique

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A UM ANCIÃO



Que te valeu viveres tantos anos,
A sofrer da existência os dissabores,
Enganado, a buscar novos enganos,
Trocando a velha dor por novas dores?

Falharam-te de glória os nobres planos;
Desejavas amor, tiveste... amores.
E, hoje, passas, cansado, entre os humanos,
Indiferente a ápodos e a louvores.

De nada te serviu quanto aprendeste
Do mundo; e tudo quanto viste e quanto
Em mil volumes, velho amigo, leste.

De nada. E a vida foi-se-te, entretanto.
Se para envelhecer é que viveste,
Que te valeu, ancião, viveres tanto?...


Bastos Tigre
Antologia Poética – 1.982 -




quinta-feira, 11 de setembro de 2014

PALAVRAS FUNDAMENTAIS



Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais, e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e, se o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.


Nicolás Guillén
Tradução de Albano Martins)





domingo, 7 de setembro de 2014

OS VELHOS



Não é simples envelhecer.
Já um poeta o disse.
Peregrinos do tempo,
aprenderam, pelo olhar,
o caminho do trigo maduro,
o perfil dos navios
que partem sem regresso,
a mudança das estações do ano,
a curta duração das emoções.
Mas, quem se lembra da fadiga
dos seus braços, agora,
que é outono em suas mãos?
Quem fez do banco do jardim
um referente da morte,
o lugar onde a sua solidão se acoita?
Quem esqueceu, nas suas rugas,
a sábia maturidade da vida,
ou antes, um modo diverso
de olhar na direcção da noite?


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

JARDIM




Quando os ventos da primavera 
fustigam os jardins e as rosas 
se desfolham por terem a fragilidade 
do silêncio fica na terra um perfume 
tão inquietante que entontece 
o cetim das palavras.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

VELHA CHÁCARA



A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

— Mas o menino ainda existe.


 MANUEL BANDEIRA
In Lira dos cinquent’anos, 1940

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A CRIANÇA QUE RI NA RUA




A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —
Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo.

FERNANDO PESSOA,
in POESIAS INÉDITAS


RENTE À INOCÊNCIA



As primeiras mimosas marcaram a fronte
da menina saída do livro de aventuras,
que foi largado a um canto da inocência :
graciosa personagem a crescer para a memória
como um feitiço ; íman sagrado que resgata
a fantasia e desenha um berço nas mãos
dos que são da mesma estirpe dos poetas.
A morada dos gnomos situa-se na estrofe
da cantiga que fala dos moinhos de vento,
ou ao rés da magia do mais minucioso gesto
com que se adornam os cabelos e as mágoas.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

terça-feira, 2 de setembro de 2014

ESTÁS SÓ.




Estás só. Ninguém o sabe.
Estás só.
Ninguém o sabe.
Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
in Poemas de Ricardo Reis

(1888-1935)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

OUVE O TEU CORAÇÃO



Não esperes achar compensações na terra:
Se fizeres o bem, prêmio nenhum terás.
Os que sobem contigo os aclives da serra
Não te virão valer, se ficares atrás.

Aconselha-te alguém? É aquele que mais erra
Ensina-te a verdade? É o mais falso e mendaz
E o que, violento e hostil, te excita e incita à guerra
É o mesmo que desfruta as delícias da paz.

Mas não culpes ninguém. É a vida. Aceita a vida...
Como sofres, também os outros sofrerão,
Que há na maior ventura uma dor escondida.

Teu cérebro consulta, ouve o teu coração,
E, em ti mesmo, acharás a energia perdida,
A censura, o aplauso, o castigo, o perdão.

Bastos Tigre
Antologia Poética – l.982 –