sexta-feira, 29 de novembro de 2013

MATURIDADE




Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.



- Lya Luft,
em "Para não dizer adeus", 2005.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

QUASE




Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão,
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase , dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos onde nunca puz um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além,
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá Carneiro
(Lisboa 1890/Paris 1916)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

AS VOZES



A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém
Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

Manuel António Pina,
in Nenhuma palavra e nenhuma lembrança

sábado, 23 de novembro de 2013

MENINA PERDIDA




Menina perdida
no bosque da vida.

Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.



Fernanda de Castro,
in Poesia I


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

MANOEL DE BARROS



" Hoje eu completei oitenta e cinco anos .
O poeta nasceu de treze .
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais,
que moravam na fazenda , contando que eu já
decidira o que queria ser no meu futuro .
Que eu não queria ser doutor.
Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa
nem doutor de medir terras .
Que eu queria ser fraseador .
Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta.
Minha mãe inclinou a cabeça .
Eu queria ser fraseador e não doutor .
Então , meu irmão mais velho perguntou :
Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador.
Meu irmão insistiu :
Mas se fraseador não bota mantimento em casa,
nós temos que botar uma enxada na mão
desse menino pra ele deixar de variar.
A mãe baixou a cabeça um pouco mais .
O pai continuou meio vago .
Mas não botou enxada ."


Manoel de Barros ,
in " Memórias Inventadas "

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

ESTOU SEMPRE NOS LIMIARES



Estou sempre nos limiares:
sou sempre esta pausa antes
do início de uma canção,
sou um momento de espera,
quase um fim de solidão.

Sou margem de caminho para a morte,
gesto que pressente atrás do véu:
promessa de chuvas sob o céu,
e vôo que antes de partir
repousa...

- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.











quarta-feira, 20 de novembro de 2013

EXPERIÊNCIA DA MORTE



Nada sabemos desta partida, que nada
tem conosco.Não devemos nem ódio
nem admiração, nem amor a esta morte,
que é apenas uma boca de máscara,trágica.

estranhamente deformada;No mundo ainda há
muitos papéis a serem interpretados.
Enquanto nos preocupamos em agradar, a morte
jogará seu jogo, embora não agrade.

Quando tu partiste, um raio de realidade
penetrou nosso palco, pela fresta
por onde saíste: verde verdadeiro,
verdadeiro bosque, verdadeiro sol.

Continuamos a interpretar.Recitando, inquietos,
coisas apreendidas penosamente,
colhendo gestos aqui e acolá; mas tua presença
longínqua, afastada da nossa peça,

nas toca, às vezes, como se soubéssemos
algo daquela realidade.Então,
por um instante,embevecidos,
interpretamos a vida, sem pensar nos aplausos.



Rainer Maria Rilke
In Senhor, é Tempo/Poemas Selecionados
















domingo, 17 de novembro de 2013

O QUE FARÁS...



O que farás, Deus, se eu morrer?
Sou tua jarra ( e se eu quebrar?)
Sou tua poção( e se eu estragar?)
Sou tua veste e tua missão.
Sem mim perdes o teu sentido.

Sem mim não terás casa, onde
palavras, íntimas e quentes, te abriguem.
Cairá dos teus pés cansados
a sandália aveludada que eu sou.

Teu grande manto te desnudará.
Teu olhar, que minha face acolhe,
quente como um travesseiro,
virá me procurar por muito tempo
e se aninhará entre pedras,
ao pôr-do-sol.

O que farás,Deus?Tenho medo.

Rainer Maria Rilke
In Senhor, é tempo
Tradução de Karlos Rischbieter
















TÃO CEDO PASSA...


"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Fernando Pessoa/Ricardo Reis,
in "Odes"








quarta-feira, 13 de novembro de 2013

POEMA DO TEMPO



O tempo é implacável ,
Assim dizem os filósofos...

Os anos passam
Ou nós passamos pela vida...

Envelhecemos e as ilusões fenecem.
A juventude como por encanto
Fica para trás,
Ficando também com ela
Tudo que é sorridente e belo...

Quem me dera que pudesse
Voltar atrás num sentido breve
Abraçar por segundos apenas,
Num doce afago,
Aqueles desejos irrealizados
Que, muitas vezes, permanecem
Numa vivência constante...
Nem que fôssemos como as flores
Que, arrancadas de sua existência fugaz,
Permanecem nos jarros,
Enquanto possuem um resto de vida
Para morrer dias depois...


Olympiades Guimarães Corrêa
em Neblina do Tempo 1.996

terça-feira, 12 de novembro de 2013

POESIA



“Para mim, o importante em poesia
é a qualidade da eternidade que um
poema poderá deixar em quem o lê,
sem a ideia de tempo.”

Juan Ramón Jiménez

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

SABE QUE SE PODE MORRER DE SOLIDÃO?



Que mais acrescentar
sem que, nos gestos,
se tornem contraditórias as palavras?
Morrer de solidão.
Ficar exilado neste tempo cercado pelo medo.
As mãos mergulhando o vazio.
As vozes enrouquecendo de cansaço.
Um logro à medida do silêncio,
com nomes adiados sem aviso
e rostos marcados pela angústia :
fisionomias em sangue vivo,
exibindo o solitário instante da morte.
Saber que se pode morrer de solidão
e ficar de luto pela humanidade,
tão frágil e tão desprotegida.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

NÃO FALO DA IMPORTÂNCIA DO BRILHO



Nem sempre as janelas oferecem às casas
todas as possibilidades da luz.
Não falo da importância do brilho coado
nas traves, ou do vento espreitando as frestas.
Refiro a transparência consentida às aves
na pressa das cidades onde o voo se faz fuga.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O CHAMADO DAS PEDRAS



A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.

Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...
Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.

Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.

Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:

Volta...Volta...Volta...
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou...
Porque não voltou...
E a água do rio que corria
Chamava...chamava...

Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.


CORA CORALINA
In Meu Livro de Cordel, 1998







 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

OBSTINAÇÃO



Vou em silêncio
plantando minhas sementes
nas pedras rubras da estrada
nos ventos ocres do outono
nos olhos céu da manhã.

Sei que alguém me ouvirá

Álvaro Pacheco
In Balada & Outros Poemas

domingo, 3 de novembro de 2013

MANOEL DE BARROS



"Com as palavras se podem multiplicar os silêncios."

- Manoel de Barros,
em "O fazedor de amanhecer", 2001.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A UM AUSENTE



Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,

enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
In Farewell, 1996