sábado, 29 de junho de 2013

SAUDADES



Esta é a saudade: viver no afeto
E não ter morada no tempo
Estes são os desejos:conversa silenciosa
Horas diárias com a eternidade.

Esta é a vida.Até que de um ontem
suba a mais solitária de todas as Horas
Tão sorridente,diferente das irmãs
que se calam eternamente.

Rainer Maria Rilke
Trad. Augusto de Campos

quinta-feira, 27 de junho de 2013

CORAGEM




É preciso arranjar outros
motivos
outras flores e astros

Outras abertas

Entre a chuva cansada de um Outono
que não sabe já
qual é a terra certa

É preciso pensar outras imagens
outras fissuras, sítios
e cidades

Pôr fim ao lamento deste vento
tentar tirar ao anjo
a túnica e o sabre

É preciso inventar outras paisagens
outros montes e águas
outras margens

Abrir e expor o coração
e finalmente deixar
correr as lágrimas


Maria Teresa Horta,
In ‘ Destino'

quarta-feira, 26 de junho de 2013

OS DANÇARINOS DO ARAME



Dentro das atuais coordenadas do espaço e do tempo,
aqui nos vamos equilibrando sobre este fio de vida...
Que rede de segurança, pensamos nós, cheios de 
esperança e medo, que rede de segurança nos aparará?"


Mario Quintana,
in  Caderno H

terça-feira, 25 de junho de 2013

RECEITA DE CASA



Uma casa deve ter varandas
para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa de espaço para voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego
contra o tédio.

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
que é a sua essência.

Lya Luft,
In:"Exílio"

segunda-feira, 24 de junho de 2013

BRASIL



Pátria de imigração.
É num poema que te posso ter...
A terra - possessiva inspiração;
E os rios - como versos a correr.

Achada na longínqua meninice,
Perdida na perdida juventude,
Guardei-te como podia:
na doce quietude
Da força represada da poesia.

E assim consigo ver-te
Como te sinto:
Na doirada moldura de lembrança,
O retrato da pura imensidade
A que dei a possível semelhança
Com palavras e rimas de saudade.


Miguel Torga

domingo, 23 de junho de 2013

DIAS PERDIDOS




"Há dias e que tudo é sem remédio,
em que tudo começa e acaba torto.
Uma folha caiu:
era um pássaro morto.

Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono.
Nada nos fala, nos atrai, nos chama.
Choveu, parou a chuva,
ficou, porém, a lama.

Um banco no jardim. Árvores nuas,
um cisne velho, um tanque, água limosa,
nem a relva ficou,
quanto mais uma rosa.

Há barcos, há gaivotas sobre o rio,
e nas ruas há gente, há muitas casas.
Mais um dia perdido:
arrancaram-lhe as asas."


Fernanda de Castro,
 In Urgente


sábado, 22 de junho de 2013

XIV



Dentro da noite alguém cantou.
Abri minhas pupilas assustadas
De ave noturna... E as minhas mãos pelas paradas,
Não sei que frêmito as agitou!
 
Depois, de novo, o coração parou.
E quando a lua, enorme, nas estradas
Surgem... dançam as minhas lâmpadas quebradas
Ao vento mau que as apagou...
 
Não foi nenhuma voz amada
Que preludiando a canção sonâmbula,
No meu silêncio me procurou...
 
Foi minha própria voz, fantástica e sonâmbula!
Foi, na noite alucinada,
A voz do morto que cantou.

 
Mario Quintana,
in A Rua dos Cataventos
 
 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

SURDINA



Quem toca piano sob a chuva,
na tarde turva e despovoada?
De que antiga, límpida música
recebo a lembrança apagada?

Minha vida, numa poltrona
jaz, diante da janela aberta.
Vejo árvores, nuvens, - e a longa
rota do tempo, descoberto.

Entre os meus olhos descansados
e os meus descansados ouvidos,
alguém colhe com dedos calmos
ramos de som, descoloridos.

A chuva interfere na música.
Tocam tão longe! O turvo dia
mistura piano, árvore, nuvens,
séculos de melancolia ...


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas

terça-feira, 18 de junho de 2013

ITINERÁRIO DAS URZES



Quando eu me sentir triste,
triste de doer, da dor barroca,
ou imemorial, inominável,
sem fundo, sem alças,
triste das coisas cridas,
dos impérios que inventei
ou do que nem senti nascer -
triste da palavra em mortal ferida -
serás meu fiel retorno,
capelinha das urzes, à beira da estrada,
meu cavalo sem peias, minha jornada de ossos -
minha Ítaca, minha Pasárgada.

Fernando Campanella

segunda-feira, 17 de junho de 2013

PAULO FREIRE



" Eu sou um intelectual que não tem medo
 de ser amoroso, eu amo as gentes e amo 
o mundo. E é porque amo as pessoas e amo 
o mundo, que eu brigo para que a justiça
 social se implante antes da caridade"


PAULO FREIRE

domingo, 16 de junho de 2013

NA VÉSPERA



Na véspera de nada ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via, ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.


Fernando Pessoa

sábado, 15 de junho de 2013

FLORES



Minhas mãos tão antigas
e mortais
que já tocaram
a harpa do horror
e do mel
já tatearam a madrugada
suas sombras na parede
até o fundo do abismo
arrumam essas flores

elas traduzem a casa
indicam o caminho
parecem dizer é por aqui
por aqui o sol e a lua
o amor

em cima da mesa flutuam
e com o seu voo
tiram a casa do chão.


Roseana Murray
In Poesia Essencial

quarta-feira, 12 de junho de 2013

BILHETE



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada, 
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda... 

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


segunda-feira, 10 de junho de 2013

DA SAUDADE



Flor - cristal
a derramar-se dentro das horas
a dar-se em pólen
nos momentos brancos do existir

Recados de muito longe
acordando gestos dormidos!

Espera lenta
com sinal de regresso
Pedaço do sol
abrasando os minutos
Mulher-criança
brincando nos muros do Tempo

no rastro do Tempo
no tempo do Tempo


Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo



domingo, 9 de junho de 2013

MACHADO DE ASSIS




"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida,
e restaurar na velhice a adolescência.
Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o
que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia 
é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo (...)" 

Machado de Assis
in: Dom Casmurro

sexta-feira, 7 de junho de 2013

AFERIDOR



"Tenho um aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
o meu aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
o aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
o meu aferidor deu
d - e - s - e - n - c - a - n - t - o

(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)"

Manoel de Barros

terça-feira, 4 de junho de 2013

O CISNE



Este sacrifício de avançar
pelos feixes do irrealizado
lembra um cisne, altivo a caminhar.

E a morte – esse nada mais buscar
do chão diariamente repisado –
lembra a sua angustia de pousar

sobre as águas que o recebem mansas
e cedem sob ele, em suaves tranças
de marolas que cercá-lo vem;
enquanto ele, calmo e independente,
segue sempre majestosamente
como ao seu capricho lhe convém.


Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 3 de junho de 2013

OS ARROIOS



Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
As vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso
encontrão de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...

Mario Quintana
In Baú de Espantos

domingo, 2 de junho de 2013

ADAGIO



O Outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.

EUGÉNIO DE ANDRADE
In Primeiros Poemas