quarta-feira, 30 de julho de 2014

A VIAGEM DEFINITIVA



Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros
Cantando.
E ficará o meu jardim com sua árvore verde
E o seu poço branco.
Todas as tardes o céu será azul e plácido,
E tocarão, como esta tarde estão tocando,
Os sinos do campanário.

Morrerão os que me amaram
E a aldeia se renovará todos os anos.
E longe do bulício distinto, surdo, raro
Do domingo acabado,
Da diligência das cinco, das sestas do banho,
No recanto secreto do meu jardim florido e caiado
Meu espírito de hoje errará nostálgico...
E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore
Verde, sem poço branco,
Sem céu azul e plácido...
E os pássaros ficarão cantando.

Juan Ramón Jiménez 
- Trad. de Manuel Bandeira





DOÍDO CORAÇÃO DOIDO



Estive entre mim
e entre mim.

Naufrágios.
Difíceis rimas.
Remos de quebranto.
Ninguém sabe o que é.
O que se sabe não se diz.
O que se diz não se vê.

Doido coração. Doído.
Estoura, estala.
Estigma.


Lindolf Bell,
in Código das Águas


terça-feira, 29 de julho de 2014

O MILAGRE




Tu, que estremeces entre a dor passada
e a dor que chega(vês? A noite desce ...),
como podes semear, de novo, a messe
do sonho imenso, a um vento ruim tombada?

Sabes que inda te espera outra rajada,
porém sorris, e tens ao lábio a prece ...
Como que na tua alma resplandece
toda a curva da noite iluminada!

És, na esplanada aberta desta vida,
braceando aos céus, uma árvore despida
que as ventanias doidas esfolharam!

E sonhas! Ah! Na convulsão violenta,
que subterrânea fonte te alimenta,
que insondáveis raízes te ampararam?


Tasso da Silveira
in Poemas




segunda-feira, 28 de julho de 2014

HOMEM



É a Natureza, em torno. – Em vão a estudas,
e os problemas intérminos agitas:
em solidões desérticas transmudas
a seara azul das ilusões benditas ...

- É a altura imensa. – As ânsias mais agudas, por 
entendê-las, te laceram: gritas!
... mas são os astros reticências mudas
no silêncio das trevas infinitas ...

- É teu ser tumultuante. – Rememoras ...
e ouve vozes longínquas e sonoras
de perdidas distâncias, de outros mundos ...

Na água-morta do sonho te debruças,
cantas! E, assim cantando, é que soluças,
trêmulo, os teus soluços mais profundos ...


Tasso da Silveira 
in Poemas

sábado, 26 de julho de 2014

PLANTEI UMA HERA


Plantei na janela uma hera inclinada para dentro
para acolher o cheiro das manhãs em que as aves
se fazem aragem nas cortinas de cores vagas.
Encurvei os pulsos para que as mãos
se acrescentassem às sombras do beirais
sem a dor das palavras mutiladas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol

sexta-feira, 25 de julho de 2014

MISSA



Na singela capela
há um pêndulo oficiante.
Enquanto no altar claro
o sacerdote invoca o Eterno,
em cânticos ardentes
e inenarráveis gemidos
o pêndulo vai marcando, 
vai contando
inexoravelmente
os minutos perdidos.


Tasso da Silveira 
Poemas de Antes – l.966 –

quinta-feira, 24 de julho de 2014

SAUDADE



Saudade! és a ressonância
De uma cantiga sentida,
Que, embalando a nossa infância,
Nos segue por toda a vida!

Da Costa e Silva,
in Poesias Completas


quarta-feira, 23 de julho de 2014

A JARRA



Na sala dourada o crepúsculo derramou uma 
ânfora de sombra.

E todas as cores diluíram-se em tons neutros
e mortos,
e os desenhos de linhas lúcidas
dos portais de ouro,
das poltronas hieráticas
e dos estofos claros
desfizeram-se num frêmito de dispersão infinita.

Mas sobre o consolo em mogno antigo
uma jarra de mármore branco
ficou vivendo ...
... ficou vivendo, alva, na sombra, a vida
integral e pura
da forma que se não dilui ...


Tasso da Silveira
in Poemas

terça-feira, 22 de julho de 2014

INTERMÉDIO – II



Dor:

saudade de realidades perdidas.

O ângulo forte de uma sala,
a curva leve de um canteiro de rosas,
o traço lúcido de um perfil,

que se perderam na sombra imensa do passado
e são como lanternas que para sempre se apagaram
na festa prodigiosa
dos sentidos ...


Tasso da Silveira
in Poemas



sábado, 19 de julho de 2014

NARCISO E O CÉU



Este céu de ouro nítido,
mirando-se na água sereníssima,
é Narciso.
Narciso, que se despercebia das coisas todas em torno,
das montanhas imóveis na líquida faiscação da luz macia,
das árvores em balouços esquecidos e lentos,
nas ninfas ágeis e frescas como frêmitos de alvorada
na tarde mansa,
das coisas todas que, no entanto, se saturavam da graça
pura do seu corpo,
- porque a alma inteira se lhe fundia no êxtase da sua
própria beleza refletida.

Narciso, que era,
na harmoniosa alma helênica,
uma adivinhação comovida
do Ser infinito e absoluto
que eternamente se contempla a si mesmo.


Tasso da Silveira
in Poemas

sexta-feira, 18 de julho de 2014

CANÇÃO



Os cavalos do tempo são de vento.
Têm músculos de vento,
nervos de vento, patas de vento, crinas de vento.

Perenemente em surda galopada,
passam brancos e puros
por estradas de sonho e esquecimento. 

Os cavalos do tempo vão correndo.
Vêm correndo de origens insondáveis,
e a um abismo absoluto vão rumando. 

Passam puros e brancos, livres, límpidos,
no indescontínuo imemorial esforço.
Ah! são o eterno atravessando o efêmero:
levam sombras divinas sobre o dorso...


Tasso da Silveira
(Regresso à Origem, 1960)





quarta-feira, 16 de julho de 2014

FELICIDADE



Ela veio bater à minha porta
e falou-me a sorrir, subindo a escada:
“Bom dia, árvore velha e desfolhada”
e eu respondi: “Bom dia, folha morta”

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então chamou-me e disse:“Vou-me embora!
Sou a felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz”

E foi assim que em plena primavera,
só quando ela partiu contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!


Guilherme de Almeida
in Sonetos


terça-feira, 15 de julho de 2014

DA COR



"Há uma cor que não vem nos dicionários.
É essa indefinível cor que têm todos os retratos,
os figurinos da última estação, a voz das velhas damas,
os primeiros sapatos, certas tabuletas,
certas ruazinhas laterais : a cor do tempo …''

Mario Quintana
in Sapato Florido

sexta-feira, 11 de julho de 2014

NAS VOZES



Nas vozes
das velhas árvores
reconheço as dos meus ancestrais.

Sentinelas de séculos,
seu sonho está nas raízes.


Humberto Ak'abal
In Tecedor de Palavras


A CADA UM




Amanhece.

O Sol come a neblina
e começa a pintar
caminhos,árvores,
casinhas,
animais,
pessoas...

E a cada um
lhe põe sombra.


Humberto Ak'abal
In Tecedor de Palavras


NÃO ESTÃO



Os pássaros não estão,
se esconderam no meu coração.

Hoje sou ninho.

Humberto Ak'abal, 
In Tecedor de Palavras


PÁSSARO SEM ASAS



Noites escuras,
fundas, fundas,
profundas.

A escuridão tem o encantamento
de aproximar ruídos longínquos
e aumentar os pequenos.

Choveu,
me encharco.

Minha memória 
recua,recua
até encontrar minha alma de menino.
(a escuridão 
se presta para isso.)

Sou um pássaro sem asas
e não caio
porque me seguro no ar.

Humberto Ak'abal, 
In Tecendor de Palavras

AQUELA GOTA D'ÁGUA



Aquela gota
que se desprendia do teto
da minha infância
a única que ficava
depois da chuva

continua pingando
na minha memória.

Humberto Ak'abal


quinta-feira, 10 de julho de 2014

DE UMA ENTREVISTA PARA O BOLETIM DO INBA


 
Não pretendo que a poesia seja
um antídoto para a tecnocracia atual.
Mas sim um alívio.
Como quem se livra de vez em quando
de um sapato apertado e passeia descalço
sobre a relva, ficando assim mais próximo
da natureza, mais por dentro da vida.
Porque as máquinas um dia viram sucata.
A poesia, nunca.
 
Mario Quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo


terça-feira, 8 de julho de 2014

A AVÓ



Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando 

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Manuel António Pina;
in Os Livros; Assírio & Alvim, 2003


sábado, 5 de julho de 2014

ENTENDIMENTO PERFEITO



Sentaram-se no banco e se calaram, tentando entender
o silêncio. As palavras tinham um sentido além delas
mesmas. O silêncio seria, sempre, o único meio de
entendimento perfeito.

Fernando Sabino
In “0 Encontro Marcado”


quarta-feira, 2 de julho de 2014

POEMA DO NOME PERDIDO




Como é teu nome, ó amiga estrangeira,
como é teu nome, ó rosto branco,
madona de tranças tristes, rio de ouro que um vento frisa?

Onde está o teu nome, dentro de mim, que não o encontro?
Acho tuas mãos tão finas, teus olhos verdes,
teu silencio delicado...
Mas teu nome onde está?

Deves começar por A, tão clara tão nítida,
tão perdida...
água...Oh!... Ar... Dize, como te chamas?

Quero escrever-te, e conheço-te,
e não me lembro do teu nome...
Alba... Aurora... Asa... Aragem...

Como te chamas? E por que não me lembro,
lembrando-te tanto, querendo-te tanto?
Decerto, o que estimo em ti não tem nome nenhum.
Nem mesmo o teu.

Mas o teu qual é, ó amiga que assim te escondes?

Cigarra na folhagem, sussurra para que te encontre!

Amália! Amália!

Ó exata, ó fiel, ó geométrica,
é dona das cores matutinas, dos barcos brancos,
das janelas fechadas ao crepusculo!...

Quem separa dentro de mim teu rosto do teu nome?

E procurei-o letra por letra,
como em noite escura se adivinha uma flor,
tocando pétala por pétala.

E eras inúmera! Amália, Amália...

Dália . 


Cecília Meireles
Poesia Completa
In: Dispersos (1918 – 1964)

terça-feira, 1 de julho de 2014

PROFECIA



Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto — indigesto

— voltará implacável como um “boomerang”
e ninguém escapará a essa lei.

Sidónio Muralha
“in” Obras Completas do Poeta


SONETO DA METAMORFOSE



Mãos, simples mãos, moldaram os meus versos
e pés humanos pisam o que escrevo.
Aos outros que conquistem universos
e a mim que pague ao povo o que lhe devo.

Mesmo que os dias sejam adversos,
é um trevo a missão a que me atrevo,
dia e noite seus gestos são diversos
- detesta o escuro, de dia abre-se o trevo.

Abre-se como o pranto, como as fontes
que irrompem das montanhas e dos montes,
descem aos vales, vão até às casas...

Um soneto estremece a manhã cálida
e o povo, num silêncio de crisálida,
forja, no sofrimento, as suas asas.

Sidónio Muralha

(1920-1982)