quinta-feira, 31 de maio de 2012

ANUNCIAÇÃO






Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.

Cessará essa música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.


Cecília Meireles,
in Viagem

CRIANÇA


Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.


Cecília Meireles,
in Viagem

NASCIMENTO DO POEMA




É preciso que venha de longe 
do vento mais antigo 
ou da morte 
é preciso que venha impreciso 
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.


Dora Ferreira da Silva,
in Andanças

quarta-feira, 30 de maio de 2012

HENRY THOREAU



Fui para os Bosques

viver de livre vontade
Para sugar
toda a essência da Vida.
Para aniquilar
tudo o que não era vida
e para quando morrer,
não descobrir
que não vivi.


Henry Thoreau ,
in Walden ou A vida nos bosques

MANOEL DE BARROS


"As folhas das árvores servem para nos ensinar
a cair sem alardes .”


Manoel de Barros


terça-feira, 29 de maio de 2012

CREPÚSCULO




Na hora em que o dia não é mais dia,
em que a noite não é noite ainda,
tudo é magia, e o céu parece
veludo furta-cor
escorrendo das mãos vazias.

Roseana Murray,

in Poemas de Céu

CONQUISTA




Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!


Miguel Torga,
in Cântico do Homem

O BECO



No beco escuro e noturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.


Dante Milano,
in Melhores Poemas



MIA COUTO




" Hoje sei : nenhuma rua é pequena .
Todas escondem infinitas histórias ,
todas ocultam incontáveis segredos ."

Mia Couto ,


in " Antes de nascer o mundo"

segunda-feira, 28 de maio de 2012

RUMO AO SUMO




Disfarça, tem gente olhando.
uns olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando
olhando ou sendo olhado

Outros olham pra baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

Paulo Leminski,

IN Toda Poesia

sexta-feira, 25 de maio de 2012

HERMANN HESSE



"...e mesmo a mais infeliz das existências tem os
seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura
a brotar entre a areia e as pedras..."


Hermann Hesse,
in O Lobo da Estepe

quinta-feira, 24 de maio de 2012

NOTURNO



Nossos olhos nos pertencem —
não o dia.
Amor não nos pertence
nem a morte.
Apenas pousam na pérola mais fina.
Desce o luar
No flanco de rios precipitados
folhas se alongam
caules estremecem.

A noite já desfere
seu punhal de trevas.


Dora Ferreira da Silva,
in Poesia Reunida

O SILÊNCIO



O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silencio maior:
antecâmara do ultimo,
que anuncia outro depois.


Dora Ferreira da Silva,
in Poesia Reunida

JARDIM NOTURNO


Os mortos chegam
pisando com pés de flores
tocam violetas
temem o brilho das rosas
luas de nácar desfazem
na grama
lúnulas maculas de pólen
e as mínimas flores
da deslembrança.
O silencio
agita sombras.
O que buscais amados mortos
pisando com pés de flores:
o odor de dias idos
nas magnólias?
Raízes
de que saudade?

Ah delírio de girassol da noite!

Só o vento desliza.
Os amores-perfeitos (eles buscam) e outros
de azulada memória.


Dora Ferreira da Silva,
in Poesia Reunida

AS HORAS


As Horas cismam no ar parado:
— Passado.

As Horas bailam no ar fremente:
— Presente.

As Horas sonham no ar obscuro:
— Futuro.


Da Costa e Silva

IDENTIFICAÇÃO



Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.


Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.


Helena Kolody,
in Paisagem Interior

quarta-feira, 23 de maio de 2012

ESTÁ SE CUMPRINDO O RITUAL



Está se cumprindo o ritual.

Depois dos avós
foram-se os pais
os tios, alguns primos.

Os amigos, uns distantes
outros próximos
apagam-se no horizonte.

É lento (e progressivo) o ritual.

Que os filhos não partam antes.
Deve haver uma certa ordem nessas coisas.

Consentimos.
Mas nem por isso deixamos de estremecer
antes do instante final.


Affonso Romano de Sant’Anna,
in Sísifo desce a montanha

terça-feira, 22 de maio de 2012

AS ESTRELAS DO LAGO


Havia, ontem à noite, tanta estrela
A tremer, a luzir n’água do lago,
Que eu pensei que era o céu
Que, por artes de algum mago,
Tinha descido à terra, de repente! ...
Parei-me junto ao lago, contemplando ...
E as estrelas, uma a uma,
Como espuma,
À flor d’água tremiam, refulgiam ...
Mas pouco a pouco foram reduzindo
O seu brilho,
E desapareceram ...

Olhei o céu: Lá estavam todas elas
A tremer, a brilhar! ...
Por certo riam
Da minha ingênua confusão ...
Que importa! ...
As estrelas do céu também se apagam.

Terra e céu cabem juntos
Dentro do mesmo sonho e da mesma ilusão ...


Emilio Kemp
in Cantos de Amor ao Céu e à Terra

segunda-feira, 21 de maio de 2012

RAINER MARIA RILKE



"(...) ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração
e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados
ou livros escritos num idioma estrangeiro.
Não busque por enquanto respostas que não lhes podem ser dadas,
porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo.
Viva por enquanto as perguntas.
Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo,
consiga viver a resposta."


Rainer Maria Rilke,
Fragmento de “Cartas a um jovem poeta.”

domingo, 20 de maio de 2012

CAIO FERNANDO ABREU


"Anota aí para seu futuro:
desapegar das pessoas,
se importar menos,
não se abalar por nada nem ninguém.
Correr atrás daquilo que faça seu coração vibrar,
ficar perto de quem te quer bem.
Correr atrás dos seus sonhos, se amar mais.
Esquecer tudo aquilo que te faça mal."

Caio Fernando Abreu

sábado, 19 de maio de 2012

O CASACO



Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo.
Ele queria amanhecer .


Manoel de Barros
In.:"Os Melhores poemas"

sexta-feira, 18 de maio de 2012

ISABEL MEYRELLES


Eu morrerei.
E nos outros serei a recordação
dum grande pássaro selvagem
que bateu as asas
longamente...
longamente...
Enquanto se ouvir
o eco das minhas asas,
terei a vida das aves

Isabel Meyrelles
In Palavras Noturnas e Outros Poemas


quinta-feira, 17 de maio de 2012

ANÍBAL MACHADO



“Limpa de vez em quando tuas gavetas, ninho de fantasmas.
Queima os papéis velhos, os arquivos mortos.
Ajuda o esquecimento a esquecer...
Antes o virgem vazio que a sufocação dos entulhos.
Que em tua cabeça as idéias não se imobilizem nunca em
arranjos de museu, mas fermentem para novas metamorfoses
Chegarás, assim, à maturidade com direito aos fulgores da vida”...


Aníbal M. Machado,
in Cadernos de João

quarta-feira, 16 de maio de 2012

EMÍLIO MOURA



Eis a nossa fraqueza:
- a necessidade de compreender e de sermos compreendidos,
essa febre de ser, esse espanto, esse inconformismo,
e essa mágoa secreta de não conseguirmos captar a vida
em seus momentos mais puros.


Emílio Moura
in Itinerário Poético

INVENÇÃO DA NOITE



Deste silêncio e desta treva
construo a minha noite
particular e intransferível.
Não preciso inventar as estrelas,
elas nascem e brilham por si mesmas.
E à meia-noite uma lua triste
levanta a cara de prata no horizonte
e verte nos meus olhos um choro, um frio.


Anderson Braga Horta
In Fragmentos da Paixão


CAMINHO AO CONTRÁRIO



De vez em quando
caminho ao contrário:
é a minha maneira de lembrar.

Se caminhasse só para a frente,
poderia contar-te
como é o esquecimento.


Humberto Ak'abal,
In Tecedor de Palavras


terça-feira, 15 de maio de 2012

FRIEDRICH NIETZSCHE


"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás
de passar para atravessar o rio da vida. Ninguém, exceto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem número, e pontes, e semideuses
que se oferecerão para levar-te além do rio, mas isso te custaria
a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias.
Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.
Aonde leva? Não perguntes, segue-o!"


Friedrich Nietzsche


segunda-feira, 14 de maio de 2012

A MEUS FILHOS



Estou aqui ao lado,
à margem de seu caminho,
vendo você passar.
Quero que vá sozinho
mas me mantenho por perto.
Se o rumo é certo,
me aprumo e aplaudo;
se é via tortuosa,
jogo-lhe aos pés uma rosa
pra que desviando dela
você chegue a outro lugar;
se a sombra é fria,
mando-lhe um beijo quente;
se o chão queima do sol nascente,
estendo-lhe a poesia
para que o possa atenuar,
se não houver alimento,
peço ao vento
sementes que lhe tragam vida.
Para a sede,
roubo do céu a lágrima caída da madrugada.
Mas se você não precisar de nada,
ainda assim eu estarei vigiando,
escondida talvez atrás de um querubim.
Abençoarei sua vida e sua estrada,
mesmo que já esteja transformada
na forma clara e casta de um jasmim.


Flora Figueiredo
In Florescência

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SÓ NA MEMÓRIA DO TEU ROSTO



Só na memória do teu rosto, mãe
posso encontrar agora as paredes
da casa onde nasci.
Como se fosse possível voltar
àquele tempo em que a felicidade
residia nas tuas mãos
entretidas a encaracolar os meus cabelos.


Graça Pires

quinta-feira, 10 de maio de 2012

HORA MEMÓRIA



Há rostos que nunca se irão.
Outros jamais veremos
mas aí estão,
sempre.
Nunca conheceremos todos
os convivas.
Nem os mais próximos.
Sequer o irmão.
A memória retém os
que devem ficar.
Mesmo os que, fugazes,
teimam em partir.
Lembrar é fingir.


Antonio Fernando de Franceschi,
in Tarde Revelada


DÁ-ME DE BEBER...



Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga do céu
sem coares as nuvens que passam.
Morde (se quiseres)
a romã entre a rosa e o amanhã.
Prisioneira de um mito
liberta-me (se quiseres)
na próxima primavera:
puxa-me as verdes tranças
arrebata-me do trono e de seu rei obscuro
Leva-me (se quiseres) em teus braços
para onde fores e seremos primavera.
As primícias serão tuas:
as mais belas campânulas
tilintando ouro ao sol
prata sob a lua.
O que dizer do que seremos
se mudamos a cada gesto?
Dança pura.
Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga do céu
sem coares as nuvens que passam.


Dora Ferreira da Silva,
in Cartografia do Imaginário

quarta-feira, 9 de maio de 2012

SIMONE DE BEAUVOIR


“...mudaram as coisas ao redor de mim.
O triunfo do BEM sobre o MAL deixou de ser evidente,
parecia mesmo duramente comprometido.

Eu caíra, como muitos outros, do azul coletivo
na poeira terrestre:
O solo estava juncado de ilusões desfeitas...”


Simone de Beauvoir,
in Sob o Signo da História


MIA COUTO




“O bom do caminho é haver volta .
Para ida sem vinda basta o tempo ."


Mia Couto,
in " Um rio chamado tempo , uma casa chamada terra"

A CONCHA



A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.



Vitorino Nemésio

CANTIGA PARA NÃO MORRER



Quando você for se embora,

moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.



Ferreira Gullar,
in De Dentro da Noite Veloz

terça-feira, 8 de maio de 2012

ALMA PERDIDA



Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda noite choraste...e eu chorei!
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...


Florbela Espanca

PARTITURA COM LUA



Notação de pássaros
no fio da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desalento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde dos fios da rua.
Ei-la tão plena do dia findo azulado —
a lua soberana e alta
do sono deste outono.


Dora Ferreira da Silva


INTERROGAÇÃO



Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas
o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite


Emílio Moura


MEMÓRIA DA MANHÃ



A manhã vai longe
quando os pássaros dormem
e as cores sonham
o prefácio do dia.


Edival Perrini
em Pomar De Águas

DESPEDIDA



Dizer adeus ao mistério daquela porta cerrada
à luz fosca desse dia abandonado.
Que severa parecias, longínqua e inviolada
flor deste inverno findando.
Recolhi-me entre os crisântemos
que te vestiam tristonhos:
tanto abandono querida uma parede tão dura
impermeável ao pranto à ternura
levados para te dar. Ao meu sim de desalento
nenhuma resposta ou lamento,
nada. Teu segredo, só ele persistia.
Fiquei noturna, olhando teu esquivo dia.


Dora Ferreira da Silva,
in Cartografia do Imaginário

ALMA ESTRANGULADA



Cada um de nós que vai por essa estrada deserta
sente que uma multidão de espíritos vive dentro de si.
Às vezes nos surpreendemos tão diferentes de nós mesmos...

(As sombras na alma pesam tanto, são tão quietas,
como a noite, são tão frias, como o luar).

... tão diferentes, como se, de súbito,
uma multidão de espíritos vivesse dentro de nós.



Emílio Moura

DO ECLESIASTES



Há um tempo para
desarmar os presságios

há um tempo para
desamar os frutos

há um tempo para
desviver
o tempo.


Orides Fontela
in Trevo

ISABEL MEYRELLES



Encontros que não marcaste
em ruas que desconheces
eu esperarei
até que as noites deslizem
sobre mim
e eu fique transformada
em arvore


Isabel Meyrelles, in
Palavras Noturnas & Outros Poemas

segunda-feira, 7 de maio de 2012

QUANDO EU PARTIR




Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida...
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão-de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão-de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre.
Mas ali
Hei-de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei-de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre

Ruy Cinatti,
In ‘Nós Não Somos deste Mundo’ 


domingo, 6 de maio de 2012

AS FLORES



Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 5 de maio de 2012

sexta-feira, 4 de maio de 2012

FICAM AS SOMBRAS



Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
E da alma,
E do nome,
E da terra da própria sepultura,
Fica a memória de uma criatura
Que viveu,
E sofreu,
E amou,
E cantou,
E nunca se dobrou
À dura tirania que a venceu.

Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.
E sabeis que se comem
Os frutos acres da recordação...
Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão.


Miguel Torga
In "Antologia Poética"

quinta-feira, 3 de maio de 2012

INGENUIDADE


Escrevi meus versos
numa curva do caminho
vazia ou plena
ela descrevia vozes
dançava entre regaços de risos
desenhava solidões
entre cantos
sussurrava distâncias
transmitia saudade
como pássaro que foge

que foge

que morre

Escrevi meus versos ...

- Por onde voam os meus pássaros?
Por que minhas noites
não anoitecem?

Alvina Nunes Tzovenos,
in Palavras ao Tempo


quarta-feira, 2 de maio de 2012

DIA DE OUTONO


Senhor, é tempo. O verão foi grande.
Pousa sua sombra nos cadrans solares,
e pelos ares os ventos expande.

A tardia fruta torna madura;
dá-lhe mais dois dias meridionais,
amadurece-a com toques finais
e concentra na uva toda a doçura.

Não mais fará casa quem agora não a tem.
Quem agora está só, muito tempo há de ficar,
irá ler, velar e longas cartas esboçar,
pelas alamedas, inquieto, vai vagar,
enquanto no alto as folhas secas vão e vem.

Rainer Maria Rilke
In Senhor, é Tempo