terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

AO SOL




Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade

nua a carnação sob o manto escarlate.

- Dora Ferreira da Silva,
 em "Andanças". 






quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

BRINCA À BEIRA MAR




Recua no tempo.
Ajusta a areia aos teus dedos de criança.
Brinca à beira-mar, o teu espaço mais cúmplice.
Já sobre ti rolam as algas e tu, de olhos
fechados, reténs esse prazer apetecido.
As conchas vêm brincar contigo.
Falam do sussurro dos peixes escondidos
nas ervas marinhas, da ancoragem dos barcos
e da lisura das quilhas submersas.
Um bando de pássaros abre-te no peito
um estuário onde as marés se abraçam.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

REGRESSO




Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.

Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.

À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.

Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.

Graça Pires
De Poemas, 1990



VAI CHOVER





Vai chover, e eu vou estar mais triste.
Chuva é distância: esfuma, apaga, esconde.
Doerei por não saber se ainda existe
o verde luar e sonha um quando e um onde.

(É talvez mais mortal haver sorrido
que ter chorado: talvez guarde a boca
sombras que os os olhos já terão perdido...)
Sinto distância em mim. A vida é oca,

e dentro dela chovo, transbordando,
minha cinza, meu longe, estes em que ando
restos de sons e faces de arrebol;

e vejo entre submissa névoa e vento
reabrir-se em curva de ouro o pensamento
das horas que moraram no teu sol.

Abgar Renault
in "Obra Poética" – l.990 –






BREVIDADE


Arte Leonid Afremov

É curto o caminho
largos são os passos
sombria é a travessia.
Longe, ao largo
passeia indiferente
a eternidade.

Miriam Portela