quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

REINAUGURAÇÃO





Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza,
a exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.

Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.


Carlos Drummond de Andrade,
In: Farwell

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

SEM MEDO OU PIEDADE



Arte Victor Bregeda


A página 
em branco,
que a tantos 
assusta,
na verdade 
pouco custa:

Era aquilo, 
agora é isso!

Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

terça-feira, 1 de novembro de 2016

EXCERTO LITERÁRIO




"O menino então sorri e nem o inimigo mais
feroz resistirá a esse sorriso de quem se
oferece tão sem defesa."

Lygia Fagundes Telles ,
in Verão no Áquário

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

OLHA-ME RINDO UMA CRIANÇA


Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.

Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.

Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

LAR




Lar é onde se acende o lume e se partilha mesa
e onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde.
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam:
um estalar de madeiras, um ranger de degraus,
um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros,
como se eles estivessem ali desde o princípio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade no tecto,
o pequeno defeito do caixilho,
são imutáveis como uma assinatura reconhecida.
Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes
nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam.

Rosa Lobato Faria ,
in "O Sétimo Véu"








domingo, 2 de outubro de 2016

APRENDENDO A VERBEJAR*




Engatinhar
sem rumo previsto.
Nunca aceitar imposto
diverso caminho.

Balbuciar, 
sem uso bem visto, 
em inverso e vário
mais atrevido abuso.

Até silabar,
de repente, a mesma
palavra frequente
como original avatar.

Repetir 
tudo aquilo, 
num grave grito aflito,
e num arguir tranquilo.

Dizer, 
diante da vida
e da morte, Tudo:

Antes do fim previsto!

Até um dia sentir
o saber, a dor, 
a alegria e gosto 
da frase inédita:

Todos os tempos do Verbo
inquieto – a dieta angélica,
a gramática rupreste, 
a tempestade que invade
a majestade da Língua!

(Essa, a glória profana;
a ousadia do bardo bárbaro Ser!)

Jairo de Britto,
em “Aquarela da Madrugada”
Vitória, Espírito Santo - Brasil

domingo, 18 de setembro de 2016

FIZ DO VERDE MEU CAMINHO...



Fiz do verde meu caminho,
fiz da vida plantação;
plantei flor e passarinho,
filhos, versos e oração.
Plantei pão e plantei vinho,
com o amor da minha mão.
Caminhei por verdes mares,
fiz sorrir verdes olhares,
verde foi o meu jardim.
Verde foi minha esperança
no verdor das minhas tranças...
Hoje restam só lembranças
com as quais brinco cantares
da ventura que há em mim.
O Senhor é meu pastor
e nas verdes pradarias
me regala paz sem fim!


Patricia Neme,
em Tempos

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Às vezes, não há nenhum aviso...




“Às vezes, não há nenhum aviso.
As coisas acontecem em segundos.
Tudo muda.
Você está vivo.
Você está morto.
E as coisas continuam. 
Somos finos como papel. 
Existimos por acaso entre as 
percentagens, temporariamente.
E esta é a melhor e a pior parte,
o fator temporal.
E não há nada que se possa fazer
sobre isso. Você pode sentar no 
topo de uma montanha e meditar
por décadas e nada vai mudar.
Você pode mudar a si mesmo 
para ser aceitável mas talvez 
isso também esteja errado.
Talvez pensemos demais.
Sinta mais, pense menos.”

Charles Bukowski 
in , " O capitão saiu para o almoço
e os marinheiros tomaram conta do navio "

FERNANDO PESSOA




" Nascemos sem saber falar e morremos 
sem ter sabido dizer .
Passa-se nossa vida entre o silêncio de quem
está calado e o silêncio de quem não foi
entendido , e em torno disto , como uma abelha
em torno de onde não há flores , paira incógnito
um inútil destino ."

Fernando Pessoa , 
in " No jardim de Epícteto "





HORA LILÁS...




Hora lilás, da cor desta saudade
Que não me deixa mais o coração,
Hora em que a alma toda se me invade
Só de tristeza e de desolação ...

Hora em que eu lembro a minha pouca idade
E a minha tão cruel desilusão ...
Tudo se esvai na bruma da saudade,
Essa tão doce e triste cerração ...

Hora lias, da cor que me entristece,
Desta saudade que jamais esquece
Meu coração cansado de sofrer;

Hora em que eu vivo a vida já vivida,
Hora lilás, da cor da minha vida,
Pois é saudade só o meu viver.

Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas











sábado, 13 de agosto de 2016

A CASA


Arte Margarita Sikorskaia



Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.

A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.

Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.

Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…

E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.

Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam. 

- Mia Couto, 
em “Tradutor de chuvas”

segunda-feira, 25 de julho de 2016

RAÍZES




Quem me dera ter raízes,
que me prendessem ao chão
Que não me deixassem dar
um passo que fosse em vão.

Que me deixassem crescer
silencioso e erecto,
como um pinheiro-de-riga,
uma faia ou um abeto

Quem me dera ter raízes,
raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
o ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
pelas raízes, ao chão.

Jorge Sousa Braga, 
“Herbário”, Assírio e Alvim, 1999

DORMIR UM POUCO...





Dormir um pouco — um minuto,
um século. Acordar
na crista
duma onda, ser
o lastro de espuma
que há no sono
das algas. Ou
ser apenas
a maré, que sempre
volta
para dizer: eu não morri, eu sou
a borboleta
do vento, a flor
incandescente destas águas.

Albano Martins,
in "Castália e Outros Poemas"


quinta-feira, 7 de abril de 2016

DA CONDIÇÃO HUMANA


Todos sofremos. 
O mesmo ferro oculto 
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta 
O mesmo sal nos queima os olhos vivos. 
Em todos dorme 
A humanidade que nos foi imposta. 
Onde nos encontramos, divergimos. 
É por sermos iguais que nos esquecemos 
Que foi do mesmo sangue, 
Que foi do mesmo ventre que surgimos.



Ary dos Santos
in 'Liturgia do Sangue'

terça-feira, 5 de abril de 2016

A CALIGRAFIA DO SILÊNCIO


Fotografia Leo Flores

Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

sábado, 12 de março de 2016

ELA VAI CRESCER VENDO POESIA....




Ela vai crescer vendo poesia no umbigo da lua,
enquanto ele amará os números embutidos nos
anéis de saturno. Ela será a rima que se atira
sem medida protetiva; ele calculará o próximo
passo, o gesto, a isca, com a maior segurança .
Desde sempre ela é o excesso e, passem décadas,
não medirá esforços em seu transbordamento.

Ele, daqui a mais de trinta outonos,
economizará palavras, exercendo seu direito
de represa.

Ela sonhará com aquele amor criança e lhe
dará uma chance, caso ele "enloucresça".

valéria tarelho

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

AO SOL




Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade

nua a carnação sob o manto escarlate.

- Dora Ferreira da Silva,
 em "Andanças". 






quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

BRINCA À BEIRA MAR




Recua no tempo.
Ajusta a areia aos teus dedos de criança.
Brinca à beira-mar, o teu espaço mais cúmplice.
Já sobre ti rolam as algas e tu, de olhos
fechados, reténs esse prazer apetecido.
As conchas vêm brincar contigo.
Falam do sussurro dos peixes escondidos
nas ervas marinhas, da ancoragem dos barcos
e da lisura das quilhas submersas.
Um bando de pássaros abre-te no peito
um estuário onde as marés se abraçam.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

REGRESSO




Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.

Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.

À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.

Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.

Graça Pires
De Poemas, 1990



VAI CHOVER





Vai chover, e eu vou estar mais triste.
Chuva é distância: esfuma, apaga, esconde.
Doerei por não saber se ainda existe
o verde luar e sonha um quando e um onde.

(É talvez mais mortal haver sorrido
que ter chorado: talvez guarde a boca
sombras que os os olhos já terão perdido...)
Sinto distância em mim. A vida é oca,

e dentro dela chovo, transbordando,
minha cinza, meu longe, estes em que ando
restos de sons e faces de arrebol;

e vejo entre submissa névoa e vento
reabrir-se em curva de ouro o pensamento
das horas que moraram no teu sol.

Abgar Renault
in "Obra Poética" – l.990 –






BREVIDADE


Arte Leonid Afremov

É curto o caminho
largos são os passos
sombria é a travessia.
Longe, ao largo
passeia indiferente
a eternidade.

Miriam Portela