terça-feira, 31 de julho de 2012

DESCOMPASSOS



Baila sob a luz das estrelas.
Desata o fio de teus sapatos.
Deixa que o sol te beije de esperanças e risos.
Faze de tua vida
um hino ao beijar os olhos da manhã
uma harpa ao por os pés no ventre da noite
um rodopio de azuis, de conchas e de búzios.


Deixa que o vento brinque com teus pés
a chuva te beije ate se cansar
as flores e os verdes e os caracóis
enfeitem teus cabelos de verões.


Corre atrás da vida com ternura de criança
e canções plenas de paz
e com risos de palhaços
porque tudo, todos nos
brincamos de viver bem
sempre, sempre
num carrossel
no circo da vida.


Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo

segunda-feira, 30 de julho de 2012

SEMENTE DO DESERTO



No alto sertão da minha terra
Cai, misteriosa, uma semente
Que a outras sementes move guerra.

onde ela nasce, de repente,
— Seara de mão cruel e ignota —
A relva murcha, suavemente.

E nas planícies onde brota,
E onde nem sempre é conhecida,
Toda a campina se desbota...

(Semente bárbara e remota,
Quem te semeou na minha vida?)

Humberto de Campos
In ‘Poesias Completas’

domingo, 29 de julho de 2012

ISABEL MEYRELLES



“Farei do silêncio
uma proa de barco
da tua ausência um rio
d’árvores afogadas”

Isabel Meyrelles

NUNCA E SEMPRE



Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher..

Mas sempre os passarinhos
cantaram e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver.


Helena Kolody
in Sinfonia da vida 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A PASSAGEM



Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por ser eu diferente ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o caminho.
E passarei sozinho.

Lêdo Ivo,
in "O Rumor da Noite"

quinta-feira, 26 de julho de 2012

V



Basta que a sombra desça e o silêncio se faça,
para que tudo assuma as proporções, a graça,
o espirito, a cadência, a estranha realidade
das cousas de arte, mais reais do que a verdade.

Onestaldo de Penafort,
in Poesia

quarta-feira, 25 de julho de 2012

VINHO


É Puro o vinho deste odre,
vindo de preclaros vinhedos.
Apanha-o na taça de ouro,
ou no tarro de barro,
ou no caneco rústico:
- em qualquer humilde vasilha
ele te dará sempre o sabor transcendente
que trouxe de suas altas origens.


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes

terça-feira, 24 de julho de 2012

UNANIMISMO


Neste momento em que te falo, algures
um homem agoniza e há um trem que parte.
Que isso não te magoe e antes murmures;
eu vivo, eu sonho e estou em toda parte.

Onestaldo de Pennafort,
in Poesia

segunda-feira, 23 de julho de 2012

SE EU PUDESSE DEIXAR DE CORRER



Se eu pudesse deixar de correr
Caminhava se eu pudesse deixar de caminhar
Sentava-me à sombra da nogueira azul do céu
Se eu pudesse deitar-me deitava-me
Numa cova com a forma do meu corpo em
Repouso se eu pudesse deixar de cantar
Fechava os olhos e olhava o alto vazio
Onde não acontece nada a não ser
A conciliação provisória do caos
E da luz que não se cansa de nascer.


Casimiro de Brito,

in Na Via Do Mestre

sábado, 21 de julho de 2012

APRENDIZADO



Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

Ferreira Gullar
In Barulhos

sexta-feira, 20 de julho de 2012

ROSEANA MURRAY



Procura-se algum lugar do planeta
onde a vida seja sempre uma festa
onde o homem não mate
nem bicho nem homem
e deixe em paz
as árvores na floresta.

Procura-se algum lugar no planeta
onde a vida seja sempre uma dança
e mesmo as pessoas mais graves
tenham no rosto um olhar de criança.

Roseana Murray
In Classificados Poéticos

quinta-feira, 19 de julho de 2012

ERA O DIA


Era o dia dos crisântemos brancos, -
e eu tinha quase medo de seu pesado esplendor.
Então vieste tomar meu coração,
Vieste a mim,
em plena noite.

Eu tinha muito medo, mas vieste, suave e querida,
em sonho, por um instante, eu pensara em ti.
Vieste, e docemente, como uma ária de lenda,
soou a noite.


Rainer Maria Rilke
in Antologia Poética

terça-feira, 17 de julho de 2012

SIMPLICIDADE



Tudo é tão simples nesta vida e fica
às vezes tão confuso ou tão bisonho
que a linguagem das coisas se duplica
ante os olhos atônitos de sonho.
E essa simplicidade, clara e rica
de sensações indefiníveis, ponho
no pensamento real que frutifica
na ambiguidade em que me decomponho.
Mas o cenário vai mudando. E a vida
se lança calma e convenientemente
na foz do tempo. E eu continuo , a esmo,
minha jornada interrompida,
procurando o horizonte inexistente
na planície impossível de mim mesmo.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos

segunda-feira, 16 de julho de 2012

ANTE O FRIO


Ante o frio,

faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível:
um outro coração.


Mia Couto,
in A Chuva Pasmada

domingo, 15 de julho de 2012

TEMA SECULAR



As velhas ilusões são como um bando
de cisnes a vogar em manso lago:
Seguem suaves, silentes; vão sonhando,
ao condão misterioso de um rei mago...

A tarde é um lírio roxo: o ocaso é brando,
e morre à beira-céu, com o um afago;
a lua, errante arcanjo miserando,
ergue-se então com o seu palor pressago...

Há sombras pelos bosques enluarados,
e nos torreóes do céu vultos humanos
envolvem-se em grinaldas de noivados...

Vêm dias, e vêm meses, e vêm anos:
E os cisnes, em casais de bem casados,
seguem singrando o lago dos enganos...


Alphonsus de Guimaraens

sábado, 14 de julho de 2012

CREPÚSCULO



Luz de fim do dia.
E a tua imagem flutua...
Vaga nostalgia!

Delores Pires,
in O Livro dos Haicais

sexta-feira, 13 de julho de 2012

A PALAVRA E O HOMEM



A palavra inventou-se
para que fosse a chave
do mistério, ou não fosse...
Na manhã do inefável

achou a paz perdida;
por onde viaje e aporte
-vê o mistério da vida,
vê o mistério da morte;

e eis a porta imantada
nos umbrais da lenda,
eis a nau ancorada
onde o que é se desvenda


Colombo de Sousa ,
In: Antologia Poética

quinta-feira, 12 de julho de 2012

POEMA DESENHADO



No meio da página escrevo ao acaso a palavra MENINA
e à sua magia, um caminho abre-se
para ela andar.
E como houvesse brotado aos seus pés um arroio espiador
uma ponte estendeu-se
para ela atravessar.

Mas a menina
agora parou
e do meio da ponte namora encantadamente nas águas
a graça inacabada de seu pequenino rosto feito às pressas

Às pressas...
(nem tive tempo de lhe dar um nome)

A vida é assim,
meninazinha sem nome...

A vida nem dá tempo para a vida!


MARIO QUINTANA
In Baú de espantos

CÂNTICO



Colho o inefável entre as mãos do vento
como quem colhe rosa em pensamento;

cresço no Tempo e o colorido lento
do vento apaga minha realidade;

pássaro livre nos jardins cifrados,
vôo em violino, em minhas mãos me invento.

Colombo de Sousa
In: Estágio

quarta-feira, 11 de julho de 2012

TODAS AS VIDAS



Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho, olhando pro fogo.
benze quebranto, bota feitiço, ogum orixá.
macumba, terreiro, ogã, pai-de-santo.

Vive dentro de mim a lavadeira do rio vermelho,
seu cheiro gostoso d'água e sabão
rodilha de pano, trouxa de roupa, pedra de anil
sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim a mulhar cozinheira, pimenta e cebola
quitute bem feito, panela de barro, taipa de lenha
cozinha antiga, toda pretinha, bem cacheada de picumã
pedra pontuda, cumbuco de coco, pisando alho-sal.

Vive dentro de mim, a mulher do povo
bem proletária, bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa,
de chinelinha e filharada.

Vive dentro de mim a mulher roceira - enxerto da terra,
meio casmurra, trabalhadeira,
madrugadeira, analfabeta, de pé no chão
bem parideira, bem criadeira
seus doze filhos, seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida
minha irmãzinha, tão desprezada, tão murmurada
fingindo alegre seu triste fardo.
Todas as vidas dentro de mim:
na minha vida - a vida mera das obscuras.

Cora Coralina 

CONDENAÇÃO


Deixe a luz acesa, que eu estou com medo de mim.
Bati a porta errada,
disse a palavra inadequada,
queimei o filme,
rasguei o cetim.
Hoje eu tropecei na própria sombra,
errei a mira,
quebrei o cristal.
Se alguém me disser que não faz mal,
quem sabe eu me convença
e anule de vez essa sentença
que determina minha pena capital.

Flora Figueiredo,
In Chão de Vento 

terça-feira, 10 de julho de 2012

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA



Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela,vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre as sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com o limite do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro.

Adélia Prado
In Oráculo de Maio

À MESA



Faca oxidada contra a polpa verde,
é roxo o amor.
De amoras, não.
De dor.

Adélia Prado
In Oráculo de maio

sábado, 7 de julho de 2012

A VERDADE



A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 6 de julho de 2012

TRADUZIR-SE



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Ferreira Gullar
In: Na Vertigem do Dia

FERNANDO SABINO



De tudo ficaram três coisas :
a certeza de que estamos sempre começando ,
a certeza de que é preciso continuar ,
a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar .
Portanto devemos :
fazer da interrupção um caminho novo ,
da queda um passo novo de dança ,
do medo uma escada ,
do sonho uma ponte e ,
da procura um encontro ".

Fernando Sabino,
in Encontro Marcado

quinta-feira, 5 de julho de 2012

SONO COLOQUIAL



Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

Mia Couto,

in Idades/ cidades/ divindade

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O SILÊNCIO



Ouve, meu filho, o silencio.
É um silencio ondulado,
um silencio
onde resvalam vales e ecos
e que inclina as frontes
para o chão.


Federico Garcia Lorca

terça-feira, 3 de julho de 2012

NO SEU JARDIM FEITO DE TINTA...



No seu jardim feito de tinta...
com insólita serenidade
o poeta percorre as áleas da memória
e caminhando por entre signos
contempla a distração nula do tempo
o paradoxo incrível do ser
a ferida íntima da alma


Ana Hatherly

segunda-feira, 2 de julho de 2012

POESIA




O amor também cansa.
Renova a tua vida, dia a dia.
Onde estiver esperança
põe teu sonho e tua fantasia.

Entrega-te a cada hora
e aceita sem reservas
tudo o que venha ao teu encontro.
Não sejas como as ervas.

Deixa em tudo o teu selo de postagem.
Bebe em todas as fontes, se puderes.
Só terás remorso
dó que possas fazer e o não fizeres.


Não forces a tua inspiração.
Deixa a poesia vir naturalmente
e não obrigues a mentir o coração.

Procura ser espontâneo.
A verdadeira beleza
está no que o homem tem de semelhante
com a natureza.




Albano Martins,
in Antologia Poética

domingo, 1 de julho de 2012

A LIBERDADE



A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In Tempo Dividido