terça-feira, 9 de maio de 2017
A VIDA TEM CRUELDADES
A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se
estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão,
nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer
relacionamento: amizade, família, trabalho, amor,
somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil.
Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos
reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação
pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos
o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a
salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar,
e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos,
teimamos em pensar que ainda há remédio:
um pobre band-aid serviu.
Ou um passe de mágica que nos tornasse
menos expostos, menos humanos.
LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997
terça-feira, 18 de abril de 2017
EU VI UMA ROSA
Eu vi uma rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua
Sozinha no mundo.
Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.
Tudo isso era excesso.
A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
Sozinha no tempo.
Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe da glória
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira,
segunda-feira, 17 de abril de 2017
CAMPOS ENTARDECIDOS
Arte Igor Zenin
O poente em pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
remanseou-se ao redor do vilarejo.
Os cincerros recolhem a tristeza
dispersa dessa tarde. A lua nova
é um fio de voz que vem do céu.
Conforme vai anoitecendo
volta a ser campo o vilarejo.
O poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
As cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.
No aposento vazio
a noite fechará os espelhos.
Jorge Luis Borges
in Primeira Poesia
quinta-feira, 6 de abril de 2017
RETRATO INDIMENSIONAL
Meus pais estão no retrato
sorridentes. O sorriso
é claro e meigo. Entretanto,
bem sei que atrás dessa luz
há tanta dor concentrada!
Uma dor que não se fez
em dois dias, em um mês.
Ai! dor de toda uma vida!
É dor. Mas dor familiar,
feita de coisas miúdas
mais que de grandes desastres:
de pedaços de esperança,
de uma atenção infinita,
da rotina de cuidados
de amor diários —rotina
iluminada!—, de restos
de emoções desencontradas,
de vagos desgostos, vagos
presságios, sonhares vagos,
das precisas incisões
que rasga no rosto a cega,
lenta lâmina do tempo.
Vejo agora como a soma
de tantas dores dispersas,
como essa dor concentrada
alimenta a luz sublime
na sua face estampada.
Vejo-o como nunca o vira
no tempo deles. Agora,
fora do tempo e do espaço,
melhor que no espaço tempo,
melhor do que nunca e sempre,
as nossas luzes se encontram
num doce carinho antigo.
Alheios a tempo e espaço,
meus pais descem do retrato
e vêm conversar comigo.
Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)
terça-feira, 21 de março de 2017
AGRADOS & PERDIDOS I
Arte Igor Zenin
Ele, abriu as mãos
então juntas
como em quase prece.
Mostrou-lhe Tudo
que a deslumbrava!
Ela, viu esmeraldas, rubis,
antúrios azuis, orquídeas,
nuvens grávidas de avencas.
Até oceanos e rios,
refletindo a Lua,
pensou ter visto.
Foi quando ouviu
sua voz forte, solar
crua e nua ecoar.
Querida, aqui estão
os mais caros;
precisos presentes:
Todas as coisas Eternas!
Cuidado,
nem todas são Ternas.
Jairo De Britto,
em "Aquarela da Madrugada"
quarta-feira, 1 de março de 2017
MARÇO
Que etéreo veneno entorpecente
De sonhos infinitos e tranqüilos
Trazes contigo, límpido março azul
Das transparentes distâncias!
Helena Kolody
In ‘Infinita Luz’
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
A MÁSCARA
Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.
Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.
E entre a mágoa que masc'ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
Augusto dos Anjos
CARNAVAL DO INFINITO
A tarde era de inverno...
Contudo passava, triunfalmente,
lá na avenida roxa de crepúsculo,
o áureo carro alegórico do Sol!
Nuvens vestidas em negros dominós
caminhavam como bêbedos, sonhando...
Rufava, ao longe, o tambor forte dos trovões,
sacudindo o coração da natureza.
Tremebrilhavam pelos paços do Infinito
as lâmpadas inquietas dos relâmpagos...
As serpentinas policrômicas do arco-íris
enroscavam-se aos corpos trêmulos das nuvens.
Daí a pouco,
como de imensos palácios invisíveis,
começou a cair,
em gotas claras de cristal diluído,
o cloretil finíssimo da chuva...
enquanto, além, surgia lentamente
o pierrô sonâmbulo da noite
que trazia, nas suas mãos de veludo,
- para o carnaval do espaço -
o confete dourado das estrelas...
Filgueiras Lima
in Festa de Ritmos
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017
MÁSCARAS
Arte Dorina Costras
No perpétuo carnaval
deste mundo desvairado,
usam disfarces
fingem-se outros.
Adivinha quem é quem,
no baile de máscaras.
Helena Kolody
in Correnteza
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
CORAÇÃO
Lembrança, quanta lembrança
Dos tempos que já lá vão!
Minha vida de criança,
Minha bolha de sabão!
Infância, que sorte cega,
Que ventania cruel,
Que enxurrada te carrega,
Meu barquinho de papel?
Como vais, como te apartas,
E que sozinho que estou!
Ó meu castelo de cartas,
Quem foi que te derrubou?
Tudo muda, tudo passa
Neste mundo de ilusão;
Vai para o céu a fumaça,
Fica na terra o carvão.
Mas sempre, sem que te iludas,
Cantando num mesmo tom,
Só tu, coração, não mudas,
Porque és puro e porque és bom!
Guilherme de Almeida,
In Toda Poesia
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
AH! QUEREM UMA LUZ
Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores que estas flores —
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
Alberto Caeiro
in Poemas Inconjuntos
domingo, 22 de janeiro de 2017
SONETO A QUATRO MÃOS
Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.
Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
Vinícius de Moraes
e Paulo Mendes Campos
sexta-feira, 20 de janeiro de 2017
DOR
"Há de ser uma estrada de amarguras
a tua vida. E andá-la-ás sozinho,
vendo sempre fugir o que procuras
disse-me um dia um pálido adivinho.
"No entanto, sempre hás de cantar venturas
que jamais encontraste... O teu caminho,
dirás que é cheio de alegrias puras,
de horas boas, de beijos, de carinho..."
E assim tem sido... Escondo os meus lamentos:
É meu destino suportar sorrindo
as desventuras e os padecimentos.
E no mundo hei de andar, neste desgosto,
a mentir ao meu íntimo, cobrindo
os sinais destas lágrimas no rosto!
Humberto de Campos
In ‘Poesias Completas’ (1933)
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
MARIA
Maria, há tanta Maria
cantando na minha vida.
Maria cheia de graça,
Maria cheia de vida.
Andei mundo, rodei terra,
cruzei os mares que havia
e, em cada canto da terra,
o amor eu tive, Maria.
Na vida que Deus me deu,
deu-me tudo o que eu queria:
deu-me esperança e me deu
o amor que eu sempre amaria.
Eis por que sempre há Maria
mariando na minha vida.
Maria cheia de graça,
Maria cheia de vida.
Gilberto Mendonça Teles
CHÁ DAS CINCO
para Jorge Amado
Chá de poejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo de saia
chá de erva-cidreira se ela for solteira
chá de beldroega se ela foge ou nega
chá de panela para as coisas dela
chá de alecrim se ela for ruim
chá de losna se ela late ou rosna
chá de abacate se ela rosna ou late
chá de sabugueiro para ser ligeiro
chá funcho quando houver caruncho
chá de trepadeira para a noite inteira
chá de boldo se ela pedir soldo
chá de confrei se ela for de lei
chá de macela se não for donzela
chá de alho para um ato falho
chá de bico quando houve fuxico
chá de sumiço quando houver enguiço
chá de estrada se ela for casada
chá de marmelo quando houver duelo
chá de douradinha se ela for gordinha
chá de fedegoso pra mijar gostoso
chá de cadeira para a vez primeira
chá de jalapa quando for no tapa
chá de catuaba quando não se acaba
chá de jurema se exigir poema
chá de hortelã e até amanhã
chá de erva-doce e acabou-se
(pelo sim pelo não
chá de barbatimão)
Gilberto Mendonça Teles
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
SAUDADES
Dominando a planície, a fronde aberta
Ao Sol, beijada pela ventania,
De áureas flores e pássaros coberta,
Farfalhando, aquela árvore se erguia.
Quando o Sol, pelo azul, a chama experta,
Como um jade crisântemo - se abria,
Cantava logo um rumor d'asa, e, alerta,
Logo o bando de pássaros a enchia.
Era toda rumor. Suaves, bailando
Em torno, havia, namoradas dela,
Borboletas intrépidas, em bando.
E, do chão, como fúlgidas centelhas,
Insetos de ouro vinham ver aquela
Doce amiga de pássaros e abelhas.
Humberto de Campos
In ‘Poesias Completas’ (1933)
CONDOR
VI
Foste um sonho no azul. Viste rolar de perto
A áurea roda do Sol. No etéreo sorvedouro
Do infinito, escutaste os temporais em coro,
O barulho do céu de mil nuvens coberto.
Asas ao vento, a bater no firmamento aberto,
Quanta vez, negro e só, viste, espantado, o louro
Bando de astros faiscar no intérmino Deserto
Como constelações de borboletas de ouro!
E subiste... A Amplidão te acalentou nos braços
Largos. Alto, a rolar, embalde o Sol faiscantes,
Crespas ondas de luz golfejou nos espaços.
E caíste, afinal, palpitante e convulso.
E hoje, guardas no olhar as mil nuvens distantes,
- Astro frio e sem luz, dentre os astros expulso!...
Humberto de Campos
In ‘Poesias Completas’ (1933)
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
EXCERTO LITERÁRIO
“E quando à tua frente se abrirem muitas
estradas e não souberes a que hás-de escolher,
não te metas por uma ao acaso, senta-te e espera.
Respira com a mesma profundidade confiante com
que respiraste no dia em que vieste ao mundo,
e sem deixares que nada te distraia,
espera e volta a esperar.
Fica quieta, em silêncio e ouve o teu coração.
Quando ele te falar,
levanta-te e vai para onde ele te levar."
Susana Tomaro,
in "Vai aonde te leva o Coração"
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
REINAUGURAÇÃO
Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza,
a exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.
Carlos Drummond de Andrade,
In: Farwell
segunda-feira, 21 de novembro de 2016
SEM MEDO OU PIEDADE
Arte Victor Bregeda
A página
em branco,
que a tantos
assusta,
na verdade
pouco custa:
Era aquilo,
agora é isso!
Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"
terça-feira, 1 de novembro de 2016
EXCERTO LITERÁRIO
"O menino então sorri e nem o inimigo mais
feroz resistirá a esse sorriso de quem se
oferece tão sem defesa."
Lygia Fagundes Telles ,
in Verão no Áquário
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
OLHA-ME RINDO UMA CRIANÇA
Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.
Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.
Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.
Fernando Pessoa
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
LAR
Lar é onde se acende o lume e se partilha mesa
e onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde.
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam:
um estalar de madeiras, um ranger de degraus,
um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros,
como se eles estivessem ali desde o princípio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade no tecto,
o pequeno defeito do caixilho,
são imutáveis como uma assinatura reconhecida.
Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes
nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam.
Rosa Lobato Faria ,
in "O Sétimo Véu"
domingo, 2 de outubro de 2016
APRENDENDO A VERBEJAR*
Engatinhar
sem rumo previsto.
Nunca aceitar imposto
diverso caminho.
Balbuciar,
sem uso bem visto,
em inverso e vário
mais atrevido abuso.
Até silabar,
de repente, a mesma
palavra frequente
como original avatar.
Repetir
tudo aquilo,
num grave grito aflito,
e num arguir tranquilo.
Dizer,
diante da vida
e da morte, Tudo:
Antes do fim previsto!
Até um dia sentir
o saber, a dor,
a alegria e gosto
da frase inédita:
Todos os tempos do Verbo
inquieto – a dieta angélica,
a gramática rupreste,
a tempestade que invade
a majestade da Língua!
(Essa, a glória profana;
a ousadia do bardo bárbaro Ser!)
Jairo de Britto,
em “Aquarela da Madrugada”
Vitória, Espírito Santo - Brasil
domingo, 18 de setembro de 2016
FIZ DO VERDE MEU CAMINHO...
Fiz do verde meu caminho,
fiz da vida plantação;
plantei flor e passarinho,
filhos, versos e oração.
Plantei pão e plantei vinho,
com o amor da minha mão.
Caminhei por verdes mares,
fiz sorrir verdes olhares,
verde foi o meu jardim.
Verde foi minha esperança
no verdor das minhas tranças...
Hoje restam só lembranças
com as quais brinco cantares
da ventura que há em mim.
O Senhor é meu pastor
e nas verdes pradarias
me regala paz sem fim!
Patricia Neme,
em Tempos
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
Às vezes, não há nenhum aviso...
“Às vezes, não há nenhum aviso.
As coisas acontecem em segundos.
Tudo muda.
Você está vivo.
Você está morto.
E as coisas continuam.
Somos finos como papel.
Existimos por acaso entre as
percentagens, temporariamente.
E esta é a melhor e a pior parte,
o fator temporal.
E não há nada que se possa fazer
sobre isso. Você pode sentar no
topo de uma montanha e meditar
por décadas e nada vai mudar.
Você pode mudar a si mesmo
para ser aceitável mas talvez
isso também esteja errado.
Talvez pensemos demais.
Sinta mais, pense menos.”
Charles Bukowski
in , " O capitão saiu para o almoço
e os marinheiros tomaram conta do navio "
FERNANDO PESSOA
" Nascemos sem saber falar e morremos
sem ter sabido dizer .
Passa-se nossa vida entre o silêncio de quem
está calado e o silêncio de quem não foi
entendido , e em torno disto , como uma abelha
em torno de onde não há flores , paira incógnito
um inútil destino ."
Fernando Pessoa ,
in " No jardim de Epícteto "
HORA LILÁS...
Hora lilás, da cor desta saudade
Que não me deixa mais o coração,
Hora em que a alma toda se me invade
Só de tristeza e de desolação ...
Hora em que eu lembro a minha pouca idade
E a minha tão cruel desilusão ...
Tudo se esvai na bruma da saudade,
Essa tão doce e triste cerração ...
Hora lias, da cor que me entristece,
Desta saudade que jamais esquece
Meu coração cansado de sofrer;
Hora em que eu vivo a vida já vivida,
Hora lilás, da cor da minha vida,
Pois é saudade só o meu viver.
Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas
sábado, 13 de agosto de 2016
A CASA
Arte Margarita Sikorskaia
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
- Mia Couto,
em “Tradutor de chuvas”
segunda-feira, 25 de julho de 2016
RAÍZES
Quem me dera ter raízes,
que me prendessem ao chão
Que não me deixassem dar
um passo que fosse em vão.
Que me deixassem crescer
silencioso e erecto,
como um pinheiro-de-riga,
uma faia ou um abeto
Quem me dera ter raízes,
raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
o ácer e o aloés.
Sentir a copa vergar,
quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
pelas raízes, ao chão.
Jorge Sousa Braga,
“Herbário”, Assírio e Alvim, 1999
DORMIR UM POUCO...
Dormir um pouco — um minuto,
um século. Acordar
na crista
duma onda, ser
o lastro de espuma
que há no sono
das algas. Ou
ser apenas
a maré, que sempre
volta
para dizer: eu não morri, eu sou
a borboleta
do vento, a flor
incandescente destas águas.
Albano Martins,
in "Castália e Outros Poemas"
quinta-feira, 7 de abril de 2016
DA CONDIÇÃO HUMANA
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos
in 'Liturgia do Sangue'
terça-feira, 5 de abril de 2016
A CALIGRAFIA DO SILÊNCIO
Fotografia Leo Flores
Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
sábado, 12 de março de 2016
ELA VAI CRESCER VENDO POESIA....
Ela vai crescer vendo poesia no umbigo da lua,
enquanto ele amará os números embutidos nos
anéis de saturno. Ela será a rima que se atira
sem medida protetiva; ele calculará o próximo
passo, o gesto, a isca, com a maior segurança .
Desde sempre ela é o excesso e, passem décadas,
não medirá esforços em seu transbordamento.
Ele, daqui a mais de trinta outonos,
economizará palavras, exercendo seu direito
de represa.
Ela sonhará com aquele amor criança e lhe
dará uma chance, caso ele "enloucresça".
valéria tarelho
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
AO SOL
Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.
- Dora Ferreira da Silva,
em "Andanças".
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
BRINCA À BEIRA MAR
Recua no tempo.
Ajusta a areia aos teus dedos de criança.
Brinca à beira-mar, o teu espaço mais cúmplice.
Já sobre ti rolam as algas e tu, de olhos
fechados, reténs esse prazer apetecido.
As conchas vêm brincar contigo.
Falam do sussurro dos peixes escondidos
nas ervas marinhas, da ancoragem dos barcos
e da lisura das quilhas submersas.
Um bando de pássaros abre-te no peito
um estuário onde as marés se abraçam.
Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014
REGRESSO
Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.
Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.
À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.
Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.
Graça Pires
De Poemas, 1990
VAI CHOVER
Vai chover, e eu vou estar mais triste.
Chuva é distância: esfuma, apaga, esconde.
Doerei por não saber se ainda existe
o verde luar e sonha um quando e um onde.
(É talvez mais mortal haver sorrido
que ter chorado: talvez guarde a boca
sombras que os os olhos já terão perdido...)
Sinto distância em mim. A vida é oca,
e dentro dela chovo, transbordando,
minha cinza, meu longe, estes em que ando
restos de sons e faces de arrebol;
e vejo entre submissa névoa e vento
reabrir-se em curva de ouro o pensamento
das horas que moraram no teu sol.
Abgar Renault
in "Obra Poética" – l.990 –
BREVIDADE
Arte Leonid Afremov
É curto o caminho
largos são os passos
sombria é a travessia.
Longe, ao largo
passeia indiferente
a eternidade.
Miriam Portela
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
MONÓLOGO
Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.
Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!
É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,
qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.
Dante Milano,
In melhores Poemas
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
EXCERTO LITERÁRIO
...
então, por favor, me dêem isso:
um pouco de silêncio bom, para que eu escute o
vento nas folhas, a chuva nas lajes, o mar que
quebra na areia, e tudo o que fala muito além
das palavras de todos os textos & muito além
da música dos sentimentos: o grito do silêncio.
sua voz inaudita, voz de vazio, voz oca, voz
que possibilita o diálogo entre tantas vozes
outras, vozes que surgem do (aparente) vazio
dentro de nós, e que retumbam, e que ressoam,
vozes que se reafirmam satisfeitas, vozes
que pedem mudanças, vozes que precisam ser
encaradas & resolvidas se necessário.
ouvir a voz do silêncio: a pedra, toda
exterioridade, um silêncio absoluto defronte
para o mar: ouvir o que sua voz tem a nos ventar.
...
Lya Luft,
in Pensar é transgredir
sábado, 10 de outubro de 2015
TODOS OS DIAS
Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas...
Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo...
Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações...
Todos os dias
nascem risos, canções...
Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...
Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs...
Saúl Dias
In ‘Essência’ (1973)
SÓ PORQUE ME SORRISTE
Só porque me sorriste
nessa tarde
o sol inundou a cidade.
E no meio do asfalto,
entre o rumor dos táxis,
surgiram de repente
árvores agrestes cheias
de flores e pássaros.
Saul Dias
sábado, 3 de outubro de 2015
EXCERTO LITERÁRO
Cada pessoa brilha com luz própria,
entre todas as outras.
Existem fogos grandes e fogos pequenos,
e fogos de todas as cores. Existe gente
de fogo sereno, que nem fica sabendo do
vento, e existe gente de fogo louco, que
enche o ar de faíscas. Alguns fogos,
fogos bobos, não iluminam nem queimam.
Mas outros, outros ardem a vida com tanta
vontade que não se pode olhá-los sem
pestanejar, e quem se aproxima se incendeia.
Eduardo Galeano
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
A ÁRVORE
Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?
Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?
Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências — que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos —
demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo?
Dize: e não há esperança para o Homem?
Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).
21-9 - Dia da Árvore
domingo, 20 de setembro de 2015
HORA AZUL
Hora azul.No parque, o ocaso
tem sugestões de pintura.
Crescem as sombras e alvura
dos cisnes, no tanque raso.
O velho jardim de luxo
parece um vaso de aromas.
Harmonias policromas
sobem da água do repuxo.
A tarde cai dos espaços
como uma flor, a um arranco
do vento, cai aos pedaços .
E a noite vem... No jardim,
o luar, como um pavão branco,
abre a cauda de marfim.
Onestaldo de Pennafort
- In Poesia
sábado, 19 de setembro de 2015
NEBLINA DO TEMPO
Na neblina do tempo
O menino desapareceu,
Levando com ele
Todos meus sonhos e ilusões.
Hoje,resta apenas,
No homem que sou eu,
A sombra do menino,
Daquele menino sonhador
Que fui eu
E que na neblina do tempo
Certa vez se perdeu...
Olympiades Guimarães Corrêa
in Neblina do Tempo 1.996
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
AGUARDAMOS UMA LUZ
Arte Vladimir Kush
Aguardamos uma luz de seiva
que reacenda a treva que nos cega.
Uma luz que não fira a brancura dos muros
nem as sombras dos alpendres
onde plantámos as giestas bravas.
Uma luz que devolva à terra
a farta lembrança das nascentes.
Uma luz para ficar como herança
quando as aves da morte se afastarem
para sempre deste caos
que, assustadoramente, nos acusa.
Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
ANOITECER
Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?
Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.
A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.
E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.
Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.
Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim — as palavras —
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.
Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS
MADRIGAL
"A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:
'Era uma vez uma flor,
Nasceu à beira de um Poeta...'
Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois,
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois)."
Sebastião da Gama ,
in 'Antologia Poética'
Assinar:
Postagens (Atom)