domingo, 31 de maio de 2015

LEO-NARDO, ALEGRIA EM MAIO*


Arte de Margarita Sikorskaia

31 de maio de 2015 às 04:56
I
Era uma vez Ele.
Que sorria encantado, quando
em meu colo dormindo,
ouvia-me ao violão dedilhar:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.
 
II
Era uma vez Ele.
Da palma da minha mão,
num pulo a pouso na cesta
que escolhi da Malásia:
corpo d'Água Viva - cipó, coração.
 
III
Era uma vez Ele.
Pequeno grandes olhos de rubis
brilhando. Cor do sangue
em nossas veias, adormece
alerta em Luas Novas e Cheias.
 
[Enquanto ouve o caminho inverso:
dó, sí, lá, sol, fá, mi, ré, dó]
 
IV
Era uma vez Ele.
Que, safo, nunca pergunta
o quê menos ou mais dizer:
Sempre sabe o mais preciso saber!
 
V
Era uma vez Ele.
Um Leão. Beduíno que alimenta 
o Atlântico Dragão Cigano: fera
infante insone em veloz (a)crescer.
 
Coração de Planalto e Mar íntimos,
Ele gosta de ferramentas.
Um martelo laranja sorvendo
e socando o Verão.
Gosta de mais brincar - com lápis
livros, cores, fitas e bolas de sabão:
 
Nelas, atrevido, mira.
Nelas atira
um alicate ou flecha - que explodiam
em sussurro marretados nos Legos.
 
VI
Era uma vez Ele.
Que dormia ao som das notas que,
indo e vindo, dó a dó - não escondiam
uma risada em Sol Maior...
 
VII
Era uma vez Ele.
Gêmeo de nós, Leo. Invernos de mim
- que quase tudo já disseram Winters!
Que não precisa a ninguém seguir:
 
À frente, pronto a me encontrar
com ferramentas d'Alma; cores
e dores remidas em safras por vir.
Leo, Lion - cobra Alegria ao Dragão.
 
VIII
Era e sempre foi Ele.
Nas Savanas de Maio, um Cigano
assim. Ele, mínimo e máximo:
corpo inteiro entregue à Vida.
 
Veste-se pois em farra de cores
e olhos - como quem declara só
querer Ser a criança que o pai
procura dentro e fora de si, sol, Dono!
 
 
*Jairo De Britto, em "Dunas de Marfim"
[São Paulo/SP - Brasil - 2005]
Para: Leonardo Ramon
Para/To: Leo Winters (In memoriam)




sexta-feira, 29 de maio de 2015

DEPOIS DO FIM


Arte  Hans Andersen Brendekilde


A minha vida ,agora, é tão outono
Como é a luz do sol quando se põe...
Ventura que se chama e não responde,
A dar a sensação de abandono...

Nas malhas dessa rede que é o sonho
Nos sonhos que são feitos de raízes.
Do tempo em que vivi dias felizes,
É só, quando não sinto este abandono...

.Não tenho fé em nada, nem em mim!
Nem é o medo do "depois do fim",
Que me faz faz continuar por estes trilhos...

.A força. porque vivo, mesmo assim,
Não é coragem ou pena de mim... 
É por ser mulher, mãe de meus filhos...
.

Nidia Horta,
em BAILANDO O CAMINHO...
ENCONTREI UMA ROSA..

quinta-feira, 28 de maio de 2015

NÃO ME DEIXES!



Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
'Ai, não me deixes, não!'

'Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!'

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
'Ai, não me deixes, não!'

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
'Ai, não me deixes, não!'

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
'Não me deixaste, não!'.”

Antônio Gonçalves Dias,
de "Nossos Clássicos"

TENHO TANTO SENTIMENTO





Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.”

Fernando Pessoa
Em “Cancioneiro”

segunda-feira, 25 de maio de 2015

''VEREDAS--DA--VIDA''


Arte de Igor Zenin

...sonho...sonho... sonho...
...sonho mares, espaços vazios,
...sonho cores, plantas,
montanhas , animais...
pinto quadros em letras...
pinto poemas por sinais...
...crio um mundo alucinante
de beleza e de cor...
serei poeta... ou serei pintor?
sou apenas eu,
ser amante da tela colorida,
em sonho errante
pelas veredas da vida...
Oeiras, 31 de Agosto de 2013
Nìdia Horta

CANÇÃO




Passa o vento de outono
derrubando a tarde:
caem torres douradas,
folhas azuis caem.

E passa o tempo louco
derrubando os sonhos:
caem torres de amor,
trêmulas folhas caem.

No vazio cai,
sem fim, meu coração.
Nada pode salvar-me.
Deus sabe que estou morto.

Sobre mim passa um rio
de esquecimento sem remédio.
Acima cruzam flores.
Sei que ninguém me ouve.

Eduardo Carranza
In: Antologia Poética



sexta-feira, 22 de maio de 2015

EXCERTO LITERÁRIO


Arte Dima Dmitriev

"Nós adoecemos da ausência de amigos.
Precisamos desse reconhecimento mútuo,
pessoa a pessoa: um reconhecimento não
fundado no confronto ou na competição,
mas no afeto; não determinado meramente
pelas leis da justiça ou pelos vínculos
de sangue, mas assente na gratuidade.
O olhar do amigo é uma âncora. A ela
nos seguramos em estações diferentes
da vida para receber esse bem inestimável
de que temos absoluta necessidade e que,
verdadeiramente, só a amizade nos pode
dar: a certeza de que somos acompanhados
e reconhecidos. Sem isso a vida é uma
baça surdina destinada ao esquecimento."

José Tolentino Mendonça, 
em "Nenhum Caminho será Longo"

quinta-feira, 21 de maio de 2015

EM TEMPO



TEMPO vamos fazer uma troca? 
Eu lhe dou as minhas rugas 
Você devolve o meu rosto 
Jovem e limpo como ontem. 
Eu lhe dou cabelos brancos 
Você me devolve os cachos 
Negros, longos, bem sedosos 
Assim como antigamente. 
Eu lhe dou minha agenda 
Cheia de notas e horários 
E você me dá de volta 
Meu álbum de figurinhas 
Toma de mim a caneta, 
Cadernos prá corrigir 
Me dá de volta os meus lápis 
E quadros prá eu colorir. 
Eu lhe dou toda essa roupa 
Que devo agora lavar 
Você me dá outra vez 
Bonecas para eu brincar. 
Eu lhe dou a pia cheia 
De pratos engordurados 
E você me dá em troca 
Caxixis para eu brincar. 
Eu lhe dou esses transportes 
Que sou obrigada a usar 
E você me dá de volta 
Bicicleta para eu montar. 
Eu lhe dou esses meus óculos 
Que da cara já não tiro 
E você me dá de volta 
Os meus olhos com o seu brilho. 
Eu lhe dou as minhas pernas 
Que já andam lentamente 
Em você devolve em troca 
As grossas de antigamente. 
Eu lhe entrego os meus braços 
Cansados de trabalhar 
Você me dá os meus braços 
Relaxados de folgar. 


 Mabel Velloso
de  PEDRAS DE SEIXO

terça-feira, 19 de maio de 2015

XI


Arte Luiza Gelts


Ah! velhos livros... Emoções passadas...
Já não nos falam mais como falaram!
Se são as mesmas pálpebras cansadas
e os mesmos olhos, já que não mudaram

as palavras das páginas marcadas,
por que não choram mais onde choraram?
É que as palavras ficam bem guardadas
lá no recanto d’alma em que ficaram.

E quantas almas há num corpo, quantas!
— cismo ao reler um livro, velho amigo
que o tempo amarelou e a que umas plantas

deram um cheiro bom de tempo antigo,
e que eu embora leia tantas vezes,
tantas… quero chorar e não consigo!


Onestaldo d Pennafort,
in Poesia


sábado, 16 de maio de 2015

FLOR AMARELA



Arte DonaldZolan

Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.

Porém, se atrás daquela 
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.


Ivan Junqueira,
in  Poesia reunida

sexta-feira, 15 de maio de 2015

NINFÉIAS




Eu vou aonde as nuvens
de impossíveis tons se embriagam,
eu nado onde aquáticos leques
se irisam em sonhos
e por arte do encanto se dissolvem.

Eu furto cores,
clico roxos que se miram
em espelhos que me expandem.

Bebo a luz, traço a alma,
eu sou o impressionista ambulante.

Então nem me perguntes
por quais cambiantes geografias me espalho:
meus olhos são câmeras mimadas
meus pincéis são artífices do instante.

Fernando Campanella

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A IMPLACÁVEL COLHEITA





Quando criança, roubaram-lhe
(em nome da cara boa conduta)...
o direito à Alegria. Ele resistiu.

Quando jovem, roubaram-lhe
(em nome da ordem e progresso)
o direito à Rebeldia. Ele revidou.

Quando adulto, roubaram-lhe
(em nome do mais querido Ter)
o direito de Ser. Ele assentiu.

À meia idade, roubaram-lhe
(em nome dos bons costumes)
o sagrado Querer. Ele aceitou.

Quando completou seus 80 anos,
(aniversariante obediente ao rito)
viu o quê permitiu! Ele perdeu.

Ele, atônito fantasma de si à deriva:
que nada a ninguém pediu e culpa.
Ele, dono do Tempo agora inútil.
Ele, só – diante do horror do não-Ser!


*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”


terça-feira, 12 de maio de 2015

A CASA DA INFÂNCIA





"A casa da infância é como um rosto de mãe: 
contemplamo-lo como se já existisse antes 
de haver o Tempo."

Mia Couto 
in O outro pé da sereia.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

EXCERTO LITERÁRIO




“Eis o que tenho a pedir-vos nos meus oitenta anos:
 plantem nesse lugar um plátano, onde o vento 
 enroladinho no sono possa dormir sem sobressaltos;
 ou uma oliveira, ou um chorão, e à sua roda ponham
 uma sebe da flor doce e musical de espinheiro branco.
 Embora tenha pouca ou nenhuma fé seja no que for,
 a terra ficará mais habitável.

 Um poema ou uma  árvore podem ainda salvar o mundo.”
 
 Eugénio de Andrade ,
 in Palavras em Serrúbia (2003)

AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES




As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões 
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo, 
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados 
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram 
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas 
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens 
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram 
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem 
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro 
E geram continuamente. Transformam-se em pomares. 
Elas arrumam a casa 
Elas põem a mesa 
Ao redor do coração.

Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados

sábado, 9 de maio de 2015

MÃE


Arte Emili Munie


São três letras apenas,
As desse nome bendito:
Três letrinhas,nada mais...
E nelas cabe o infinito
E palavra tão pequena
-confessam mesmo os ateus-
És do tamanho do céu!
E apenas menor do que Deus...

Mario Quintana 
in Lili Inventa o Mundo




sexta-feira, 8 de maio de 2015

NÓS





Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
- "Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...

Guilherme de Almeida (1860-1969)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

CAMPO


Arte Reint Withaar

Voltamos sempre à casa de campo. 
Quando não estamos as plantas 
crescem de modo irregular e o pó 
acumula-se nos móveis e nos livros. 
Não importa. 
Nós voltamos apenas para regar a sede, 
beber a terra, colher a paisagem, 
mastigar o silêncio, partilhar a fome 
e tornar depois a ir embora 
com o corpo a doer da própria ausência.


Graça Pires
De Caderno de significados, 2013


terça-feira, 5 de maio de 2015

AO VENTO DE OUTONO




Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de um vez a casca
do fruto que não madura.


Joan Vinyoli
(1914-1984)
Tradução de João Cabral de Melo Neto.


sábado, 2 de maio de 2015

SÃO AS PESSOAS COMO TU...



"São as pessoas como tu que fazem com que o nada
 queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem
 coisas importantes e as preocupações maiores sejam
 de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que 
 dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva 
 em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação
 de rosas rubras. As pessoas como tu possuem não uma,
 mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam
 porque amar é também partilhar as mãos e o corpo.
 Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem
 transformar o cansaço numa esperança aliciante,
 tocando-nos o rosto com dedos de água pura,
 soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a
 firmeza da flecha.

 São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem
 inspirar com elas o azul que há no dorso das manhãs,
 e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos
 o coração transformar o peito numa música infinita.

 São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm
 sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros 
 nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura
 da vida,capazes da beleza e da justiça, do sofrimento
 e do amor.

 São as pessoas como tu que, interrogando-nos, se 
 interrogam, e encontram a resposta para todas as
 perguntas nos nossos olhos e no nosso coração.

 As pessoas que por toda a parte deixam uma flor para 
 que ela possa levar beleza e ternura a outras
 mãos. Essas pessoas que estão sempre ao nosso lado 
 para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer
 momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, 
 a escutar um violino.

 São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo!..."
 
Joaquim Pessoa,
in 'Ano Comum' 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

MIA COUTO



Olhei o poente e vi as aves carregando o sol,
empurrando o dia para outros aléns.

MIA COUTO
in "O último voo do flamingo"