domingo, 31 de agosto de 2014

E O AMOR TRANSFORMOU-SE...



E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome.
Era disto que falavam as mães quando davam conselhos 
às filhas e diziam: o amor vem depois. 
Era isto o depois. 
Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios,
todas as horas do dia e um poema que se dissolve 
dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.
.
José Luís Peixoto, 
in Gaveta de Papéis

sábado, 30 de agosto de 2014

INUTILMENTE

(foto by Washington Takeuchi)

  
Floriram os ipês ali da praça
e, quando a gente passa,
-porque o vento as derruba em profusão –
vai esmagando flores pelo chão.
 
 
Como ciclópica oficina
pulsa, ao redor, a vida citadina.
Arranha-céus fugindo para o alto
numa arquitetura funcional;
automóveis rodando sobre o asfalto
e, de fundas angústias carregada,
a multidão correndo, alucinada,
vazia de Ideal.
 
 
Babélica, apressada,
toda essa gente não repara em nada:
não vê, em cima, a loira floração,
nem vê que pisa em flores pelo chão.
 
 
Os ipês se enfloraram, mas em vão . . .
Sua mensagem clara, colorida,
-um hino de louvor ao Belo e à Vida –
fica rolando, inútil, pelo chão,
fica, inútil, rolando pelo ar,
pois os homens não sabem mais sonhar.
 
 
Graciette Salmon
In: A Vida Por Dentro


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

ALEGRIA



Volta de novo, idade 
da inocência que foi minha. 
Traz-me nas tranças 
a cristalina alegria dos dias 
em que no fundo do coração 
nenhum nome me doía.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

CENA SEM ENSAIO




A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.


Wislawa Szymborska,
in Poemas
(tradução de Regina Przybycien)


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

BEBO SOZINHO AO LUAR



Bebo sozinho ao luar
Entre as flores há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à lua:
com ela e a minha sombra, já somos três pessoas.
Mas a lua não bebe, e a minha sombra imita o que faço.
A sombra e a lua, companheiras casuais,
divertem-se comigo, na primavera.
Quando canto, a lua vacila.
Quando danço, a minha sombra se agita em redor.
Antes de embriagados, todos se divertem juntos.
Depois, cada um vai para a sua casa.
Mas eu fico ligado a esses companheiros insensíveis:
nossos encontros são na Via Láctea.."

Li Po
(Tradução de Cecília Meireles)



'XII PRECE'



Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil, 
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda. 
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode ergue-la ainda. 

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia-
Com que a chama do esforço se remoça, 
E outra vez conquistaremos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa! 


Fernando Pessoa
in 'Mensagem'

HINO À NOITE



Ó noite, eu te desejo, e anseio o teu abraço
macio como o luar, quieto como o jazigo.
A fadiga me esvai, domina-me o cansaço,
como um boêmio feliz eu vim dormir contigo.
De sonho em sonho andei.Fui poeta, fui mendigo.
Corri atrás do tempo e me perdi no espaço
e vi se desfazer meu pensamento antigo
e em sangue transformar-se a sombra do meu passo.
Um dia, a procurar-te, olhei para o poente:
na estrada solidão da tarde, impertinente,
um pássaro de sol crepusculava a esmo.
Então eu te encontrei e, em meu triste abandono,
meus olhos disfarcei na volúpia do sono
e caminhei cantigo em busca de mim mesmo.

Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos

PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO



Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
depois pintar
qualquer coisa de bonito
qualquer coisa de simples
qualquer coisa de belo
qualquer coisa de útil...
para o pássaro
depois pendurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem dar um pio
sem mover um dedo...
Às vezes o pássaro chega sem demora
mas pode também levar longos anos
até se decidir
Não se abater
esperar
esperar anos e anos se preciso
pois a rapidez ou a demora
do pássaro não têm nada a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
manter o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando entrar
fechar suavemente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tomando cuidado para não tocar sem querer nas penas do pássaro
Fazer depois o retrato da árvore
reservando o galho mais belo de todos
para o pássaro
pintar ainda a folhagem verde e o frescor do vento
a poeira do sol
e o rumor dos insetos na relva no calor do verão
depois é só esperar que o pássaro comece a cantar
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
sinal de que o quadro é mau
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
então você deve arrancar devagarinho
uma das penas do pássaro
e escrever seu nome num canto do quadro.


Jacques Prévert
Paroles
Sextante Editora, 2007
Tradução de Manuela Torres


sábado, 23 de agosto de 2014

DEPUS A MÁSCARA



Depus a máscara e vi-me ao espelho. — 
Era a criança de há quantos anos. 
Não tinha mudado nada... 
É essa a vantagem de saber tirar a máscara. 
É-se sempre a criança, 
O passado que foi 
A criança. 
Depus a máscara, e tornei a pô-la. 
Assim é melhor, 
Assim sem a máscara. 
E volto à personalidade como a um términus de linha. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ÁRIA PARA VIOLINO



Para nadar no silêncio
ergo as mãos extraviadas;

são estrelas acordadas,
ou meu eco em seu silêncio.

Escorre pelo que sinto
meu perfil escrito e ouvido

e em som e cor me divido
entre mim e o que não sinto.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

VELHAS ÁRVORES



“Olha estas velhas árvores, — mais belas,
Do que as árvores mais moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas*…

O homem, a fera e o inseto à sombra delas
Vivem livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E alegria das aves tagarelas…

Não choremos jamais a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória da alegria e da bondade
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!”

Olavo Bilac
in 'Poesias Infantis', 

AS COISAS SÃO TRANSITÓRIAS




Irmão, 
nada é eterno, nada sobrevive. 
Recorda isto, e alegra-te. 

A nossa vida 
não é só a carga dos anos. 
A nossa vereda 
não é só o caminho interminável. 
Nenhum poeta tem o dever 
de cantar a antiga canção. 
A flor murcha e morre; 
mas aquele que a leva 
não deve chorá-la sempre... 
Irmão, recorda isto, e alegra-te. 

Chegará um silêncio absoluto, 
e, então, a música será perfeita. 
A vida inclinar-se-á ao poente 
para afogar-se em sombras doiradas. 
O amor há-de ser chamado do seu jogo 
para beber o sofrimento 
e subir ao céu das lágrimas ... 
Irmão, recorda isto, e alegra-te. 

Apanhemos, no ar, as nossas flores, 
não no-las arrebate o vento que passa. 
Arde-nos o sangue e brilham nossos olhos 
roubando beijos que murchariam 
se os esquecêssemos. 

É ânsia a nossa vida 
e força o nosso desejo, 
porque o tempo toca a finados. 
Irmão, recorda isto, e alegra-te. 

Não podemos, num momento, abraçar as coisas, 
parti-las e atirá-las ao chão. 
Passam rápidas as horas, 
com os sonhos debaixo do manto. 
A vida, infindável para o trabalho 
e para o fastio, 
dá-nos apenas um dia para o amor. 
Irmão, recorda isto, e alegra-te. 

Sabe-nos bem a beleza 
porque a sua dança volúvel 
é o ritmo das nossas vidas. 
Gostamos da sabedoria 
porque não temos sempre de a acabar. 
No eterno tudo está feito e concluído, 
mas as flores da ilusão terrena 
são eternamente frescas, 
por causa da morte. 
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Rabindranath Tagore,
in "O Coração da Primavera" 
Tradução de Manuel Simões

domingo, 17 de agosto de 2014

O SILÊNCIO...


O Silêncio amedronta.
Conforta-nos a Fala ?
Mas o Silêncio é Infinitude.
Silêncio não tem cara.

Emily Dickinson,
in Alguns poemas. Trad. José Lira

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

POEMA II




Existem gestos,
Palavras ternas e espontâneas
Cheias de calor humano.
Que brotam sem a gente sentir...
Até mesmo um simples sorriso.

Coisas que identificam,
Unem como os elos,
Elos de uma simples corrente
Nascendo , então,
Do fundo do coração,
Algo sublime,
Algo inconfundível
Que nos reabilita quando sincero,
E nos conforta - A AMIZADE.

Olympiades Guimarães Corrêa
em Neblina do Tempo -1.996

domingo, 10 de agosto de 2014

MEU PAI, DÁ-ME OS TEUS VELHOS SAPATOS MANCHADOS DE TERRA...




Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra 
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas 
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência 
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste. 

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas 
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias 
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.


Vinícius de Moraes
In Poesia completa e prosa, 1998 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

ENVELHECER...




Entra pela velhice com cuidado,
Pé ante pé, sem provocar rumores
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glórias, ilusões de amores.

Do que tiveres no pomar plantado,
Apanha os frutos e recolhe as flores;
Mas lavra, ainda, e planta o teu eirado,
Que outros virão colher quando te fores.

Não te seja a velhice enfermidade.
Alimenta no espírito a saúde,
Luta contra as tibiezas da vontade.

Que a neve caia, o teu ardor não mude.
Mantém-te jovem, pouco importa a idade;
Tem cada idade a sua juventude!...


BASTOS TIGRE


DEUS HUMANO



Assusta-me este Deus de barba imensa,
Pai severo e tirano à moda antiga,
Que com o fogo do inferno os maus castiga
Porém, na terra, os bons não recompensa.

Este Deus que a adorá-lo nos obriga,
Mas que só ama a quem o adula e incensa
Nunca há de ser o Deus da minha crença
Que eu venere e entre cânticos bendiga.

O Jeová que no Antigo Testamento
Os profetas nos pintam, truculento,
É um velho Deus, motivo de pavor.

Moço é o meu Deus, de eterna juventude:
Perdoa. Todo o mal muda em virtude.
De tão humano, é quase um pecador.


BASTOS TIGRE

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

PLURAL DE NUVENS



Se há um plural de nuvens e se há sombras
projetadas no texto das cavernas,
por que não mergulhar, tentar nas ondas
a refração dos peixes e das pedras?

Há sempre alguma névoa, um lado obscuro
que atravessa o poema. Há sempre um saldo
de formas laterais, um como escudo
que não resiste muito a teu assalto.

Se alguma luz na contraluz se esbate,
se há no curso dos dias sol e vento,
talvez na foz do rio outra cidade
venha no teu olhar amanhecendo.

Importa é caminhar, colher florzinhas,
somar os ( im ) possíveis e parcelas,
criar no tempo algumas coisas findas,
algumas ilusões e primaveras.

Importa é ler de perto a cavidade
das nuvens e espiar os seus não-ditos:
o mais são armas para o teu combate,
falsos alarmes para os teus sentidos.


Gilberto Mendonça Teles
In Plural das Nuvens


domingo, 3 de agosto de 2014

FILHO PRÓDIGO -




I
Ele me olha
com a expectativa do mundo.
Sonda o que sei,
pensa que eu sei.
 
II
Ele me acompanha
com os olhos da vida.
Mira o que dei,
julga o que eu sei.
 
III
Ele me abraça
com os anos da infância.
Acha que sou rei,
acredita que eu voltei.
 
IV
Ele me beija
com os lábios da inocência.
Escolhe as palavras,
multiplica suas vidas.
 
V
Ele me descobre
no ocaso da existência.
Confere o que sei:
já sabe que não sou rei.



Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"
12 de outubro de 2011 às 17:35


sábado, 2 de agosto de 2014

CÚMPLICE ALENTO



I
Sou lento.
Mas, atento
aos meus passos,
pesados e passados,
recupero minha História.
E persigo fantasmas
que até do diabo fogem:
aqueles que aflitos se escondem
não sei ainda por onde.
 
II
Sou vento.
Mas avento,
por entre as quatro Estações,
atos que aprendi a sentir,
sem pompa ou circunstância,
da Alma Feminina: de seus argutos,
áridos, vis ou nobres corações.
 
III
Sou advento.
Mas desinvento
cada passo e contrapasso
do meu Tempo e Memória.
Trapiche de infinitos universos,
amargo presenças e presentes:
escassos como parentes;
vários como meus únicos versos.
 
IV
Sou alento
para o leitor atento,
capaz de reler cada linha;
de arguir e beber cada ato.
Ele navega comigo.
Sem perceber o momento,
deslinda meu suposto intento:
torna-se cúmplice de inteiro trato.
 
 
*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

PAZ




Na ponta dos pés
como bailarina pisando
em folhas e assombros,
costurar os dois lados da lua,
a Terra no céu,
e no céu e na Terra
desenhar com o corpo inteiro 
a palavra paz.

Roseana Murray, 
in Todas as Cores dentro do Branco