quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VAI, ANO VELHO





1

Vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum , prá trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,,
a casa e o coração.

Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.


2

Vem Ano Novo, vem veloz
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz, moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
-de utopia.

Vem na areia da ampulheta como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se

se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol da gema no Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

3

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.

Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.

Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso  Romano de Sant’Anna





segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

NAS CASAS ABANDONADAS




Nas casas abandonadas, as silvas
vão tecendo as rédeas do tempo.
A terra inquieta fende o cimento
afagado, desfaz a cal das paredes,
contamina alvenarias.
Um declínio de pássaros na poeira
da tarde, desfoca as mãos
dos que morreram com as árvores.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

É NATAL




É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia


Eugénio de Andrade,
in: Rente ao Dizer

COMPRAS DE NATAL




A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.
Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que
não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que
jamais estiveram no céu.

As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro:
enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios
de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam 
representar beleza e excelência.

Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos,
deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo 
de animais, em Belém.

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, 
grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, 
até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última 
nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime,
nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto
bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem
todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de 
comprar se reveste de exigências particularmente difíceis.
Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à
nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir
o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. 
Não devemos também oferecer nada de essencialmente
necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece
consistir na sua desnecessidade e inutilidade.
Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) 
de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por
 estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma 
boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que 
— especialmente neste verão — teremos de conquistar o 
pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto
extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa
alguma.

Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação,
organizam suas sugestões para os compradores,
valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão.
Numa grande caixa de plástico transparente
(que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane
(que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor
(que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete),
e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. 
Todos ficamos extremamente felizes!

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os
estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, 
os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos
parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão.
E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável
— apenas o Meninozinho nas suas palhas,
a olhar para este mundo.


Cecília Meireles
In: Quatro Vozes
Rio de Janeiro, 1998, pág. 80.








sábado, 20 de dezembro de 2014

LIÇÃO




A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.

Helena Kolody 
In “Poesias escolhidas”




"NOSTÁLGICA N.º 2"




Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza em meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida




NÃO SEI





Não sei onde começa o céu e nem acaba.
O infinito se dissolve como números na névoa.
Vou-me, porque a voz que chama é a mesma que chamava.
Será a mesma, acaso, a mão que ainda me leva?



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

RITOS QUE AS HORAS CALMAS...




Ritos que as Horas Calmas 
      Ao entardecer 
Fazem com as almas 
      Sem se conhecer... 
E que em voos de ânsias 
      Põem espirituais distâncias 
Entre olhar e ver.

Turíbulos que a Tarde 
      Oscila no ar 
Donde a névoa arde 
      Cor desde cansar... 
Arco dos balanceados 
Turíbulos os raios do sol fechados 
      Na destreza do ar

Fim de missas no Poente 
      Bênçãos ainda são 
Luz branca e cinzas entre 
      Terra e coração 
Saem os fiéis p’la aberta 
Porta da paisagem que se deserta... 
      ...Sinos sem perdão...


 
Fernando Pessoa
In Poesia 1902/1917


domingo, 14 de dezembro de 2014

COMO UM EMBALO




Fosse uma chama, crepitaria
sob meus dedos, na solidão.
Nada mais quero, nada queria.
As noites chegam, os dias vão.

Fosse uma chama, breve arderia,
brasa de sonho, na escuridão.
Já nada quero da luz do dia...
Queima uma estrela na minha mão.

Mas nada quero da luz da estrela...
(Chegam as noites, os dias vão.)
Por que sonhá-la, se vais perdê-la,
alma perdida na solidão?


Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976

sábado, 13 de dezembro de 2014

CASA



A antiga casa que os ventos rodearam 
Com suas noites de espanto e de prodígio 
Onde os anjos vermelhos batalharam 

A antiga casa de inverno em cujos vidros 
Os ramos nus e negros se cruzaram 
Sob o Íman dum céu lunar e frio 

Permanece presente como um reino 
E atravessa meus sonhos como um rio 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Geografia


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

ASAS E AZARES




Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.

Paulo Leminski,
in DISTRAÍDOS VENCEREMOS

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

NUNCA SEI AO CERTO...





Nunca sei ao certo 
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé

certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé


Paulo Leminski
In Ex-estranho



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

PEQUENO POEMA




Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...



SEBASTIÃO DA GAMA
in ANTOLOGIA POÉTICA 
(edição póstuma)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

DÁ-ME TUA MÃO...





Dá-me tua mão, e dançaremos;
dá-me tua mão, e me amarás.
Uma única flor seremos
uma só flor, e nada mais...

A mesma estrofe cantaremos,
ao mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos
como uma espiga, e nada mais...

Chamas-te Rosa, eu Esperança;
mas o teu nome olvidarás,
porque seremos uma dança
sobre a colina, e, nada mais...

Gabriela Mistral 
(Tradução de Tasso da Silveira)