quinta-feira, 26 de novembro de 2015
MONÓLOGO
Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.
Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!
É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,
qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.
Dante Milano,
In melhores Poemas
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
EXCERTO LITERÁRIO
...
então, por favor, me dêem isso:
um pouco de silêncio bom, para que eu escute o
vento nas folhas, a chuva nas lajes, o mar que
quebra na areia, e tudo o que fala muito além
das palavras de todos os textos & muito além
da música dos sentimentos: o grito do silêncio.
sua voz inaudita, voz de vazio, voz oca, voz
que possibilita o diálogo entre tantas vozes
outras, vozes que surgem do (aparente) vazio
dentro de nós, e que retumbam, e que ressoam,
vozes que se reafirmam satisfeitas, vozes
que pedem mudanças, vozes que precisam ser
encaradas & resolvidas se necessário.
ouvir a voz do silêncio: a pedra, toda
exterioridade, um silêncio absoluto defronte
para o mar: ouvir o que sua voz tem a nos ventar.
...
Lya Luft,
in Pensar é transgredir
sábado, 10 de outubro de 2015
TODOS OS DIAS
Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas...
Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo...
Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações...
Todos os dias
nascem risos, canções...
Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...
Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs...
Saúl Dias
In ‘Essência’ (1973)
SÓ PORQUE ME SORRISTE
Só porque me sorriste
nessa tarde
o sol inundou a cidade.
E no meio do asfalto,
entre o rumor dos táxis,
surgiram de repente
árvores agrestes cheias
de flores e pássaros.
Saul Dias
sábado, 3 de outubro de 2015
EXCERTO LITERÁRO
Cada pessoa brilha com luz própria,
entre todas as outras.
Existem fogos grandes e fogos pequenos,
e fogos de todas as cores. Existe gente
de fogo sereno, que nem fica sabendo do
vento, e existe gente de fogo louco, que
enche o ar de faíscas. Alguns fogos,
fogos bobos, não iluminam nem queimam.
Mas outros, outros ardem a vida com tanta
vontade que não se pode olhá-los sem
pestanejar, e quem se aproxima se incendeia.
Eduardo Galeano
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
A ÁRVORE
Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?
Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?
Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências — que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos —
demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo?
Dize: e não há esperança para o Homem?
Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).
21-9 - Dia da Árvore
domingo, 20 de setembro de 2015
HORA AZUL
Hora azul.No parque, o ocaso
tem sugestões de pintura.
Crescem as sombras e alvura
dos cisnes, no tanque raso.
O velho jardim de luxo
parece um vaso de aromas.
Harmonias policromas
sobem da água do repuxo.
A tarde cai dos espaços
como uma flor, a um arranco
do vento, cai aos pedaços .
E a noite vem... No jardim,
o luar, como um pavão branco,
abre a cauda de marfim.
Onestaldo de Pennafort
- In Poesia
sábado, 19 de setembro de 2015
NEBLINA DO TEMPO
Na neblina do tempo
O menino desapareceu,
Levando com ele
Todos meus sonhos e ilusões.
Hoje,resta apenas,
No homem que sou eu,
A sombra do menino,
Daquele menino sonhador
Que fui eu
E que na neblina do tempo
Certa vez se perdeu...
Olympiades Guimarães Corrêa
in Neblina do Tempo 1.996
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
AGUARDAMOS UMA LUZ
Arte Vladimir Kush
Aguardamos uma luz de seiva
que reacenda a treva que nos cega.
Uma luz que não fira a brancura dos muros
nem as sombras dos alpendres
onde plantámos as giestas bravas.
Uma luz que devolva à terra
a farta lembrança das nascentes.
Uma luz para ficar como herança
quando as aves da morte se afastarem
para sempre deste caos
que, assustadoramente, nos acusa.
Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
ANOITECER
Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?
Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.
A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.
E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.
Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.
Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim — as palavras —
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.
Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS
MADRIGAL
"A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:
'Era uma vez uma flor,
Nasceu à beira de um Poeta...'
Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois,
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois)."
Sebastião da Gama ,
in 'Antologia Poética'
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
EXCERTO LITERÁRIO
Parabéns, querido neto Felipe
O neto é a hora
do carinho ocioso e estocado,
não exercido nos próprios filhos e que
não pode morrer conosco.
Por isso, os avós são tão desmesurados e
distribuem tão incontrolável afeição.
Os netos são a última oportunidade de
reeditar o nosso afeto.
Affonso Romano de Sant'Anna,
in Melhores Crônicas
GORJEIOS
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
Manoel de Barros
In Poesia Completa
quinta-feira, 30 de julho de 2015
IMPROVISO
Arte Laszlo Koday
... Até que um dia,
quando menos se espera,
surge uma casa dentro do sertão
surge outra casa dentro do sertão
surge outra casa uma porção de telhas novas cor
de brasa uma porção de casas.
E uma cidade como caixa de surpresa
listou de branco e de vermelho o silêncio da grota.
Um trem de ferro passa cheio de imigrantes...
(Há em seu apito como um grito de alvorada e de tristeza:
há em toda terra um choro típico de criança,
gosto de lágrimas misturadas com esperança).
Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS
quarta-feira, 22 de julho de 2015
DE SEDA
São pequenas as jarras de porcelana
onde deixámos os lírios brancos
que resistiram ao tempo da secura.
E quando os nossos olhos orvalhados
ficaram mais sensíveis à luz
do amanhecer juncámos o chão
que amamos com a brancura dos lírios.
De seda. Da sede: gota a gota.
Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012
terça-feira, 21 de julho de 2015
QUADRO ANTIGO
Por certo que amo as coisas, os objetos,
que me acompanham, neste fim de viagem.
São elas, coisas, minhas cúmplices, à hora
em que, ó lua, me contas teus segredos.
São eles, os objetos, os meus símbolos,
para uma última fotomontagem.
Mas, como são — coisas e objetos — tristes,
por já não serem mais os meus brinquedos.
Em vão o calor físico os dilata.
Em vão meu pensamento lhes dilui
o acre contorno, em proustiana sondagem.
Só, contra o sol, a sombra deles flui!
no chão, na mesa, ou — colorida imagem —
no cristal onde nunca sou quem fui.
Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS
segunda-feira, 20 de julho de 2015
NOMES
Nomes com cheiro de mato:
corticeira,
guajuvira,
aroeira,
manacá.
Helena Kolody
in ‘Sinfonia da Vida’
sexta-feira, 17 de julho de 2015
FLORES
As flores do inverno vão se abrindo
em arbustos sem folhas
candelabros de ramos
que se aquecem
na débil luz que emana das corolas.
Falam em surdina, veladas de aroma,
as pétalas, bailarinas do pudor,
confidenciando nos vórtices secretos
dentro da pálpebra do dia sem calor.
Dora Ferreira da Silva (1918-2006)
sábado, 11 de julho de 2015
O SÓSIA
Dificilmente, ó amigo,
você me encontrará presente, em casa.
Pois eu sofro de ausência,
como se houvesse, em mim, uma asa.
A esperança e a saudade
— o leste e o oeste do meu corpo obscuro —
são duas formas de eu nunca estar em casa,
quando me procuram, e eu mesmo me procuro.
Vivo continuamente longe
de mim, nas horas em que me decomponho
num sonho; estou no outro hemisfério,
que é um não sei onde, onde só ausência lavra.
Só me encontro comigo, ó amigo,
se me divido em dois, diante do espelho
Um em frente do outro,
sem nenhuma palavra.
Cassiano Ricardo,
in A Face Perdida)
quinta-feira, 2 de julho de 2015
FADOS CONTRÁRIOS
Fotografia de Nelci Kaaletka
Diz à flor a borboleta:
‘Vamos, irmã, tudo é luz!
Há muito prisma doirado
Que pelos ares transluz…
Tuas pétalas são asas,
Das nuvens nas tênues gazas,
D’aurora nos seios nus
Tens um ninho entre perfumes…
Vamos boiar, entre os lumes
Desses páramos azuis’.
À linda fada dos ares
Responde a silvestre flor:
‘Eu amo o gemer das auras
E o beijo do beija-flor…
Se és do céu a violeta,
Sou da terra a borboleta...
Sigo um destino menor.
Buscas o céu – eu a alfombra,
Queres a luz – eu quero a sombra,
Pedes glória – eu peço amor’...”
Castro Alves
Em “Poesias Completas”,
segunda-feira, 29 de junho de 2015
CERCO
Arte Giovani Strino
O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes,rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
corpo, sim,ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.
Eugénio de Andrade
In "Rente ao Dizer"
quinta-feira, 25 de junho de 2015
PAIRA À TONA DE ÁGUA
Paira à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta,
Não sabe o que quer.
É uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...”
*Fernando Pessoa*
Em “Poesias”, Lisboa, Ed. Ática, 1942.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa",
domingo, 21 de junho de 2015
SENTIMENTO DA NOITE
Com o fundo poder azul da noite,
que me clareia o coração,
por uma súbita nesga entre as nuvens
reluz o mundo das estrelas e da lua.
Em seu jazigo, lampeja minha alma
com redivivo ardor;
ao pálido perfume das esferas,
a noite dedilha a harpa.
A essa convocação, míngua a penúria
e a preocupação foge.
Mesmo que eu amanhã já não esteja
aqui – aqui estou hoje!
Hermann Hesse
In: Andares
sexta-feira, 19 de junho de 2015
SONETO DA PORTA
Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.
Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.
Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,
sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.
Lêdo Ivo
in "Plenilúnio".
terça-feira, 16 de junho de 2015
LÁ FORA, O FRIO PREPARA A SUA GEADA...
Lá fora, o frio prepara a sua geada,
a noite clara, os pássaros dormindo.
A lenha rubra em fogo se esvaindo,
um poema tecendo a sua meada.
Algo se foi. A casa está vazia.
As tábuas gastas de tantos andares
têm a memória plena de cantares
a desfiar o tempo que se adia.
Tudo é silêncio. Salvo a melodia
do fogo afugentando com urgência
a nota surda da melancolia.
Tudo é fugaz. Apenas permanece
a brasa em sua adiada despedida –
e o poema, agora cálido, se tece.
Renato Tapado
In Palavras na Penumbra
segunda-feira, 15 de junho de 2015
UM DIA JUNTEI TODAS AS PALAVRAS
Um dia juntei todas as palavras
que já aprendera e
busquei para elas novos sentidos,
novas maneiras de soar e de voar
até ao coração dos homens.
Censuraram-me por tê-lo feito
e houve até quem dissesse:
“As palavras são o que são
e procurar para elas novos significados
é pura perda de tempo e ofensa dos deuses.”
Eu não lhes dei ouvidos
e continuei a escrever, aprendendo
O sabor de casar a palavra ”água”
com a palavra ”vento” e a palavra
“corpo” com a palavra “terra”
e a palavra “homem” com “sonho”
e a palavra “natureza” com “vida”.
Foi, assim um pouco sem o querer,
um pouco sem o esperar, que usei
pela primeira vez a palavra”poesia”,
que viaja comigo, companheira eterna,
para todos os lugares onde vou,
desde a memória do homem
até aos últimos esconderijos da noite,
até ao fundo da claridade dos dias(…)
José Jorge Letria
In “No Voo de uma palavra”
quarta-feira, 10 de junho de 2015
SONETO 73
Soneto (73)
Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.
Eis o que torna o amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.
William Shakespeare, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira
segunda-feira, 8 de junho de 2015
CREPÚSCULO DE OUTONO
O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.
O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.
Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.
Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.
A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
Manuel Bandeira
De A cinza das Horas
domingo, 7 de junho de 2015
ANTES DE ANTECIPARMOS O FUTURO
Antes de anteciparmos o futuro acrescentemos
à voz da terra o sobressalto das fontes
refugiando a sede.
Nenhuma nascente escapa à exigência,
tão vulnerável, da secura do barro
que nos separa das nuvens.
Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012
terça-feira, 2 de junho de 2015
CANÇÃO DO RECOMEÇO
Arte de Luis Romero
A casa aonde voltei
depois de muitos anos,
bóia como uma ilha de aguapés na noite,
presa por uma raiz doce e dolorosa
que me define.
Na madrugada caminho pelos quartos
como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem como quando
eram meninos,
e suas respirações, como sentimentos,
fundem-se neste bojo.
Este é o meu lugar
aonde voltei depois de tanto tempo,
como quem, misturando peças
dos enigmas mais arcaicos,
montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça.
Lya Luft
LOGRO
Como se tivessem aves afogadas no olhar,
os meninos desenham com cinza
as flores do jardim.
Cresceram. Os berlindes perderam a cor.
As fadas que lhes embalavam o sono
desapareceram dos livros.
Os navios dos piratas seguiram outros rumos.
Um fuso imaginário alterou certeiro
o pulsar dos segundos no lastro dos dias.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
domingo, 31 de maio de 2015
LEO-NARDO, ALEGRIA EM MAIO*
Arte de Margarita Sikorskaia
31 de maio de 2015 às 04:56
I
Era uma vez Ele.
Que sorria encantado, quando
em meu colo dormindo,
ouvia-me ao violão dedilhar:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.
II
Era uma vez Ele.
Da palma da minha mão,
num pulo a pouso na cesta
que escolhi da Malásia:
corpo d'Água Viva - cipó, coração.
III
Era uma vez Ele.
Pequeno grandes olhos de rubis
brilhando. Cor do sangue
em nossas veias, adormece
alerta em Luas Novas e Cheias.
[Enquanto ouve o caminho inverso:
dó, sí, lá, sol, fá, mi, ré, dó]
IV
Era uma vez Ele.
Que, safo, nunca pergunta
o quê menos ou mais dizer:
Sempre sabe o mais preciso saber!
V
Era uma vez Ele.
Um Leão. Beduíno que alimenta
o Atlântico Dragão Cigano: fera
infante insone em veloz (a)crescer.
Coração de Planalto e Mar íntimos,
Ele gosta de ferramentas.
Um martelo laranja sorvendo
e socando o Verão.
Gosta de mais brincar - com lápis
livros, cores, fitas e bolas de sabão:
Nelas, atrevido, mira.
Nelas atira
um alicate ou flecha - que explodiam
em sussurro marretados nos Legos.
VI
Era uma vez Ele.
Que dormia ao som das notas que,
indo e vindo, dó a dó - não escondiam
uma risada em Sol Maior...
VII
Era uma vez Ele.
Gêmeo de nós, Leo. Invernos de mim
- que quase tudo já disseram Winters!
Que não precisa a ninguém seguir:
À frente, pronto a me encontrar
com ferramentas d'Alma; cores
e dores remidas em safras por vir.
Leo, Lion - cobra Alegria ao Dragão.
VIII
Era e sempre foi Ele.
Nas Savanas de Maio, um Cigano
assim. Ele, mínimo e máximo:
corpo inteiro entregue à Vida.
Veste-se pois em farra de cores
e olhos - como quem declara só
querer Ser a criança que o pai
procura dentro e fora de si, sol, Dono!
*Jairo De Britto, em "Dunas de Marfim"
[São Paulo/SP - Brasil - 2005]
Para: Leonardo Ramon
Para/To: Leo Winters (In memoriam)
sexta-feira, 29 de maio de 2015
DEPOIS DO FIM
Arte Hans Andersen Brendekilde
A minha vida ,agora, é tão outono
Como é a luz do sol quando se põe...
Ventura que se chama e não responde,
A dar a sensação de abandono...
Nas malhas dessa rede que é o sonho
Nos sonhos que são feitos de raízes.
Do tempo em que vivi dias felizes,
É só, quando não sinto este abandono...
.Não tenho fé em nada, nem em mim!
Nem é o medo do "depois do fim",
Que me faz faz continuar por estes trilhos...
.A força. porque vivo, mesmo assim,
Não é coragem ou pena de mim...
É por ser mulher, mãe de meus filhos...
.
Nidia Horta,
em BAILANDO O CAMINHO...
ENCONTREI UMA ROSA..
quinta-feira, 28 de maio de 2015
NÃO ME DEIXES!
Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
'Ai, não me deixes, não!'
'Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!'
E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
'Ai, não me deixes, não!'
E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
'Ai, não me deixes, não!'
Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
'Não me deixaste, não!'.”
Antônio Gonçalves Dias,
de "Nossos Clássicos"
TENHO TANTO SENTIMENTO
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.”
Fernando Pessoa
Em “Cancioneiro”
segunda-feira, 25 de maio de 2015
''VEREDAS--DA--VIDA''
Arte de Igor Zenin
...sonho...sonho... sonho...
...sonho mares, espaços vazios,
...sonho cores, plantas,
montanhas , animais...
pinto quadros em letras...
pinto poemas por sinais...
...crio um mundo alucinante
de beleza e de cor...
serei poeta... ou serei pintor?
sou apenas eu,
ser amante da tela colorida,
em sonho errante
pelas veredas da vida...
Oeiras, 31 de Agosto de 2013
Nìdia Horta
CANÇÃO
Passa o vento de outono
derrubando a tarde:
caem torres douradas,
folhas azuis caem.
E passa o tempo louco
derrubando os sonhos:
caem torres de amor,
trêmulas folhas caem.
No vazio cai,
sem fim, meu coração.
Nada pode salvar-me.
Deus sabe que estou morto.
Sobre mim passa um rio
de esquecimento sem remédio.
Acima cruzam flores.
Sei que ninguém me ouve.
Eduardo Carranza
In: Antologia Poética
sexta-feira, 22 de maio de 2015
EXCERTO LITERÁRIO
Arte Dima Dmitriev
"Nós adoecemos da ausência de amigos.
Precisamos desse reconhecimento mútuo,
pessoa a pessoa: um reconhecimento não
fundado no confronto ou na competição,
mas no afeto; não determinado meramente
pelas leis da justiça ou pelos vínculos
de sangue, mas assente na gratuidade.
O olhar do amigo é uma âncora. A ela
nos seguramos em estações diferentes
da vida para receber esse bem inestimável
de que temos absoluta necessidade e que,
verdadeiramente, só a amizade nos pode
dar: a certeza de que somos acompanhados
e reconhecidos. Sem isso a vida é uma
baça surdina destinada ao esquecimento."
José Tolentino Mendonça,
em "Nenhum Caminho será Longo"
quinta-feira, 21 de maio de 2015
EM TEMPO
TEMPO vamos fazer uma troca?
Eu lhe dou as minhas rugas
Você devolve o meu rosto
Jovem e limpo como ontem.
Eu lhe dou cabelos brancos
Você me devolve os cachos
Negros, longos, bem sedosos
Assim como antigamente.
Eu lhe dou minha agenda
Cheia de notas e horários
E você me dá de volta
Meu álbum de figurinhas
Toma de mim a caneta,
Cadernos prá corrigir
Me dá de volta os meus lápis
E quadros prá eu colorir.
Eu lhe dou toda essa roupa
Que devo agora lavar
Você me dá outra vez
Bonecas para eu brincar.
Eu lhe dou a pia cheia
De pratos engordurados
E você me dá em troca
Caxixis para eu brincar.
Eu lhe dou esses transportes
Que sou obrigada a usar
E você me dá de volta
Bicicleta para eu montar.
Eu lhe dou esses meus óculos
Que da cara já não tiro
E você me dá de volta
Os meus olhos com o seu brilho.
Eu lhe dou as minhas pernas
Que já andam lentamente
Em você devolve em troca
As grossas de antigamente.
Eu lhe entrego os meus braços
Cansados de trabalhar
Você me dá os meus braços
Relaxados de folgar.
Mabel Velloso
de PEDRAS DE SEIXO
terça-feira, 19 de maio de 2015
XI
Arte Luiza Gelts
Ah! velhos livros... Emoções passadas...
Já não nos falam mais como falaram!
Se são as mesmas pálpebras cansadas
e os mesmos olhos, já que não mudaram
as palavras das páginas marcadas,
por que não choram mais onde choraram?
É que as palavras ficam bem guardadas
lá no recanto d’alma em que ficaram.
E quantas almas há num corpo, quantas!
— cismo ao reler um livro, velho amigo
que o tempo amarelou e a que umas plantas
deram um cheiro bom de tempo antigo,
e que eu embora leia tantas vezes,
tantas… quero chorar e não consigo!
Onestaldo d Pennafort,
in Poesia
sábado, 16 de maio de 2015
FLOR AMARELA
Arte DonaldZolan
Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.
Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.
Ivan Junqueira,
in Poesia reunida
sexta-feira, 15 de maio de 2015
NINFÉIAS
Eu vou aonde as nuvens
de impossíveis tons se embriagam,
eu nado onde aquáticos leques
se irisam em sonhos
e por arte do encanto se dissolvem.
Eu furto cores,
clico roxos que se miram
em espelhos que me expandem.
Bebo a luz, traço a alma,
eu sou o impressionista ambulante.
Então nem me perguntes
por quais cambiantes geografias me espalho:
meus olhos são câmeras mimadas
meus pincéis são artífices do instante.
Fernando Campanella
quarta-feira, 13 de maio de 2015
A IMPLACÁVEL COLHEITA
Quando criança, roubaram-lhe
(em nome da cara boa conduta)...
o direito à Alegria. Ele resistiu.
Quando jovem, roubaram-lhe
(em nome da ordem e progresso)
o direito à Rebeldia. Ele revidou.
Quando adulto, roubaram-lhe
(em nome do mais querido Ter)
o direito de Ser. Ele assentiu.
À meia idade, roubaram-lhe
(em nome dos bons costumes)
o sagrado Querer. Ele aceitou.
Quando completou seus 80 anos,
(aniversariante obediente ao rito)
viu o quê permitiu! Ele perdeu.
Ele, atônito fantasma de si à deriva:
que nada a ninguém pediu e culpa.
Ele, dono do Tempo agora inútil.
Ele, só – diante do horror do não-Ser!
*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”
terça-feira, 12 de maio de 2015
A CASA DA INFÂNCIA
"A casa da infância é como um rosto de mãe:
contemplamo-lo como se já existisse antes
de haver o Tempo."
Mia Couto
in O outro pé da sereia.
segunda-feira, 11 de maio de 2015
EXCERTO LITERÁRIO
“Eis o que tenho a pedir-vos nos meus oitenta anos:
plantem nesse lugar um plátano, onde o vento
enroladinho no sono possa dormir sem sobressaltos;
ou uma oliveira, ou um chorão, e à sua roda ponham
uma sebe da flor doce e musical de espinheiro branco.
Embora tenha pouca ou nenhuma fé seja no que for,
a terra ficará mais habitável.
Um poema ou uma árvore podem ainda salvar o mundo.”
Eugénio de Andrade ,
in Palavras em Serrúbia (2003)
AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados
sábado, 9 de maio de 2015
MÃE
Arte Emili Munie
São três letras apenas,
As desse nome bendito:
Três letrinhas,nada mais...
E nelas cabe o infinito
E palavra tão pequena
-confessam mesmo os ateus-
És do tamanho do céu!
E apenas menor do que Deus...
Mario Quintana
in Lili Inventa o Mundo
sexta-feira, 8 de maio de 2015
NÓS
Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...
E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
- "Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"
E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...
E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...
Guilherme de Almeida (1860-1969)
quarta-feira, 6 de maio de 2015
CAMPO
Arte Reint Withaar
Voltamos sempre à casa de campo.
Quando não estamos as plantas
crescem de modo irregular e o pó
acumula-se nos móveis e nos livros.
Não importa.
Nós voltamos apenas para regar a sede,
beber a terra, colher a paisagem,
mastigar o silêncio, partilhar a fome
e tornar depois a ir embora
com o corpo a doer da própria ausência.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
Assinar:
Postagens (Atom)