segunda-feira, 22 de junho de 2015

POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO



                  
 
A noite trocou-me os sonhos e as mãos  
dispersou-me os amigos  
tenho o coração confundido e a rua é estreita  
estreita em cada passo  
as casas engolem-nos  
sumimo-nos 
estou num quarto só num quarto só  
com os sonhos trocados  
com toda a vida às avessas a arder num quarto só  
Sou um funcionário apagado  
um funcionário triste  
a minha alma não acompanha a minha mão  
Débito e Crédito Débito e Crédito  
a minha alma não dança com os números  
tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço 
Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino  
irmão beijo namorada  
mãe estrela música 
São as palavras cruzadas do meu sonho  
palavras soterradas na prisão da minha vida  
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só. 
     
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 

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