sexta-feira, 18 de abril de 2014

O VÍCIO DE LER




 "O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu
 tempo  livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas
 completos  do repertório popular que nessa altura eram de
 uso  corrente na  Colômbia, e os mais belos do Século de
 Ouro e do  romantismo  espanhóis, muitos deles aprendidos
 nos próprios  textos do  colégio. Estes conhecimentos
 extemporâneos na  minha idade  exasperavam os
 professores, pois cada vez que  me faziam na aula  qualquer
 pergunta difícil, respondia-lhes  com uma citação  literária
 ou com alguma ideia livresca que  eles não estavam em
  condições de avaliar. O padre Mejia  disse: «É um garoto
 afectado», para não dizer insuportável.
 Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns
 trechos de boa prosa clássica ficavam-me  gravados em três
 ou quatro releituras.  Ganhei do padre prefeito a primeira
 caneta de tinta permanente  que tive porque lhe recitei sem
 erros as cinquenta e sete  décimas de «A vertigem», de
 Gaspar Núnez de Arce. 

 Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com 
 tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível 
 devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não
 consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me
 perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever
 as minhas tolices, era solista no coro, desenhava 
 caricaturas cômicas, recitava poemas nas sessões solenes e
 tantas coisas mais foras de horas e de lugar que ninguém
 entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples:
 não estudava.
 No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo
 porque razão os professores se interessavam tanto por 
 mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário
 da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas
 cartas para o manter vivo e outras, mas devolvia 
 corrigidas e às vezes com os parabéns por certos
 progressos gramaticais e o bom uso das palavras.
 Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista.
 Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca 
consegui entender porque se admitem letras mudas ou duas
 letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas
 sem razão. 

 Foi assim que descobri em mim uma vocação que me havia de
 acompanhar toda a vida: o prazer de conversar com alunos
 mais velhos do que eu. Ainda hoje, em reuniões de jovens
 que poderiam ser meus netos, tenho que fazer um esforço
 para não me sentir mais novo do que eles”.
 Gabriel García Márquez ,
 in Viver Para Contá-la.

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