quinta-feira, 24 de abril de 2014

DO SUPÉRFLUO


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.

O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.

No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio.


Henriqueta Lisboa,
in Pousada do Ser (1982)





Um comentário:

  1. AMÁLIA,
    em geral quando plantamos roas para nós mesmos,pelo menos evitamos a frustração de ninguém vê-las.

    Concorda?

    Sou também seu seguidor e sinto a sua falta no meus blogues.

    São tão ruins assim?(rs)

    Um abração carioca.

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