segunda-feira, 28 de abril de 2014

ETERNIDADE



Conheci-te de noite: por isso te chamo estrela.
Conheci-te de dia: por isso te chamo claridade.
Conheci-te em todas as horas: por isso
te chamo eternidade.

Albano Martins,
in “Vocação do Silêncio”

O SINO E A SINA



Percorreras de novo
estas veredas.
Ouvirás de novo o sino (e a sina)
nas asas da calhandra.
Deixaras finalmente à sombra
adulta dos salgueiros
teu pálido rebanho.
Então,podes volver os passos,
subir a escada erma
e plantar uma flor no vazio.

Albano Martins
In: Antologia Poética

RETRATO



Os passos
sobre a erva.
A imagem
dum tempo
de pequenas
e graves
inflexões.

Memória
de eucaliptos
florindo
facilmente
ao vento.

Retrato
dum menino
brincando
com os dias.

Albano Martins
De «Em Tempo e Memória"


sábado, 26 de abril de 2014

''MEU NOME É ESTA CANÇÃO''



Sou uma criança perdida
na imaginação dum bosque.
O vento solta-me o coração,
mas prende-me os braços e o tronco
e nunca mudo de posição.

Os espanejadores do medo
levantam o pó das lágrimas.
O tempo empoeira-se de lendas
e a água da vida vai-se congelando,
enquanto os sonhos ressonam
e eu vou crescendo e minguando.

Queimem o bosque e procurem
o dicionário dos meus anos.
Não sei que idade tenho,
perdi a imaginação
e deixei a memória em casa.
Meu nome é esta canção.


Albano Martins
de «Outros Poemas»

SE O TEMPO...




Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.

Albano Martins,
in Antologia Poética


quinta-feira, 24 de abril de 2014

DO SUPÉRFLUO


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.

O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.

No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio.


Henriqueta Lisboa,
in Pousada do Ser (1982)





quarta-feira, 23 de abril de 2014

VIAJAR É MAIS QUE PRECISO*



 Preparou-se para aquela
 que não sabia ser sua pequena,
 grande ou maior viagem.
 
 Preparou-se para aquela
 que não sabia ser sua amena,
 áspera ou derradeira viagem.
 
 Preparou-se para aquela
 que não sabia ser penúltima,
 ou mais uma daquelas passagens.
 
 E o fez com o mais cuidadoso
 e lúcido, ácido e ávido pensar.
 
 Sabia que devia; que havia 
 de assim melhor ser: para ele
 um singular e sobreviver:
 
 Fosse na Luz aguda e infinita
 Ou na Treva arguta e maldita.
 
 Mas, sem rancor ou medo,
 ímpar Fé ou maior descrer,
 sabia que já estava pronto.
 
 Mãos e olhos fixos; o corpo
 disposto, as mãos desatadas:
 nos lábios as últimas palavras.
 
 Por entre os dedos, o Tempo,
 em horizonte perto ou distante,
 não mais lhe ditava as regras!
 
 Ele, nem vítima, herói ou rei, 
 não mais construía verdes pontes. 
 Agora, só admirava o abismo.
 
 Assim, ciente de que o coração;
 da sua, nem árdua, original, difícil 
 e inversa decisão, sem medos 
 ou oração, já não vinha tão cedo. 

 
 *Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"
 

terça-feira, 22 de abril de 2014

LEMBRANÇA


Hoje a infância voltou com a chuva.
Rosto colado à vidraça, vi pequenos rios
arrastando folhas e formigas
rumo ao desconhecido de sempre.

Ricardo Augusto dos Anjos
de 'Agrolírica'

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O VÍCIO DE LER




 "O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu
 tempo  livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas
 completos  do repertório popular que nessa altura eram de
 uso  corrente na  Colômbia, e os mais belos do Século de
 Ouro e do  romantismo  espanhóis, muitos deles aprendidos
 nos próprios  textos do  colégio. Estes conhecimentos
 extemporâneos na  minha idade  exasperavam os
 professores, pois cada vez que  me faziam na aula  qualquer
 pergunta difícil, respondia-lhes  com uma citação  literária
 ou com alguma ideia livresca que  eles não estavam em
  condições de avaliar. O padre Mejia  disse: «É um garoto
 afectado», para não dizer insuportável.
 Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns
 trechos de boa prosa clássica ficavam-me  gravados em três
 ou quatro releituras.  Ganhei do padre prefeito a primeira
 caneta de tinta permanente  que tive porque lhe recitei sem
 erros as cinquenta e sete  décimas de «A vertigem», de
 Gaspar Núnez de Arce. 

 Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com 
 tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível 
 devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não
 consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me
 perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever
 as minhas tolices, era solista no coro, desenhava 
 caricaturas cômicas, recitava poemas nas sessões solenes e
 tantas coisas mais foras de horas e de lugar que ninguém
 entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples:
 não estudava.
 No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo
 porque razão os professores se interessavam tanto por 
 mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário
 da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas
 cartas para o manter vivo e outras, mas devolvia 
 corrigidas e às vezes com os parabéns por certos
 progressos gramaticais e o bom uso das palavras.
 Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista.
 Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca 
consegui entender porque se admitem letras mudas ou duas
 letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas
 sem razão. 

 Foi assim que descobri em mim uma vocação que me havia de
 acompanhar toda a vida: o prazer de conversar com alunos
 mais velhos do que eu. Ainda hoje, em reuniões de jovens
 que poderiam ser meus netos, tenho que fazer um esforço
 para não me sentir mais novo do que eles”.
 Gabriel García Márquez ,
 in Viver Para Contá-la.

terça-feira, 15 de abril de 2014

RESSALVA


Versos... não 
Poesia... não 
um modo diferente de contar velhas histórias 

Cora Coralina 
In ‘Poemas dos Becos de Goiás’ (1965)



"ESTREITO ESPAÇO PARA A ILUSÃO"


Antes, em voo ousado, a imaginação
Subia até aos céus, plena de alento:
Hoje basta um estreito espaço para a ilusão
Se afundar nos abismos do tempo.
Logo o cuidado se aninha bem dentro
Do peito e traz secreto sofrimento;
Balança inquieto, estorva prazer e paz,
São sempre novas as máscaras que traz:
É casa e bens, mulher, os filhos que tiverdes,
Água, fogo, punhal, veneno, eu sei lá;
E tu tremes com medo do que nunca virá,
E choras sem cessar aquilo que não perdes.


Johann Wolfgang von Goethe
in Fausto



SAUDADE


Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...

- João Guimarães Rosa,
in 'Magma'.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

CANÇÃO



Quando a alta onda de poesia
veio do arcano profundo,
no pobre e efêmero mundo
o eterno pôs-se a pulsar.
Vidas se transfiguraram,
permutaram-se destinos.
O azul se fez mais etéreo,
estradas mais se alongaram,
silêncio cantou na aldeia
sino ficou a escutar,
moeu trigo a lua cheia,
lampião de rua deu luar,
a água mansa da lagoa
ergueu-se em repuxo límpido
e se esqueceu de tombar,
alvas estrelas em bando
desceram lentas pousando
sobre a terra e sobre o mar.


Tasso da Silveira
in Regresso à Origem (1960).


CANÇÃO




Esse mar tanto sulcado
por meus avós navegantes,
fugindo das praias de antes
ficou dentro em mim guardado.
Pois quanto mais alto e fundo
e perdido é o sonho, vejo
que os barcos todos do mundo
navegam no meu desejo.


Tasso da Silveira
Poemas de Antes – l.966 –


CANÇÃO



Fonte, não beberei de tua água
(À sombra pura
tenho o meu cântaro fresco)
Não beberei de tua água,
mas ouvirei teu canto.
Ouvi-lo-ei com os ouvidos
do teu mistério eterno.
Teu canto é antigo e amanhecente.
É caos e gênese.
E é como o canto
do rouxinol que cantou cem anos,
e o monge ficou escutando em êxtase,
ficou escutando, escutando,
ficou escutando ...


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes

CANÇÃO



Os ouvidos eternos
ficaram, atentos, escutando
o fundo rumor dos passos:

dos passos dos homens
pelos 
caminhos]
do mundo.


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes

LUA DE SEMPRE



Ah, esta lua tão branca é a minha
..............Lua de sempre.
Não é verdade que se tenham escoado os
..............instantes inumeráveis.
Esta Lua alumia ainda a minha alma
..............de menino,
e seu puro clarão escorre sobre as frescas
..............madressilvas
da cerca de ripas do quintal antigo.
Esta Lua tão branca é a Lua do
..............mundo imenso
em que não havia nem sofrimento nem tumulto.
Do mundo de silência infinito,
de cujo seio surdia o canto misterioso
dos seres e dos destinos...


Tasso da Silveira
in Canções a Curitiba
& outros poemas

UM PASSARINHO CANTA



Um passarinho canta
para o canto perder-se.

Para o canto fundir-se
no éter puro e sereno,
no silêncio das coisas,
no mistério dos seres.

Um passarinho canta
apenas porque é vida:
a vida é apenas canto,
canto efêmero.


Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes


quinta-feira, 10 de abril de 2014

DA RELATIVA REALIZAÇÃO



Mover-se com a máxima amplitude
dentro dos próprios limites...

Mario Quintana,
in Caderno H





quarta-feira, 9 de abril de 2014

QUINTO POEMA DO PESCADOR



Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.

Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.

Manuel Alegre
In ‘A Praça Da Canção’ ( 1975)






MAS QUE SEI EU



Mas que sei eu das folhas no Outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra fogueira qualquer.

Mas eu que sei destas manhãs?
as coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha


Ruy Belo
(In «todos os poemas)




segunda-feira, 7 de abril de 2014

NASCIMENTO ÚLTIMO



Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

António Ramos Rosa
No Calcanhar do Vento - 1987

NÃO SOU NINGUÉM



Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!

Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!


Emily Dickinson
Tradução de Augusto de Campos.





domingo, 6 de abril de 2014

É VELHO O SOL DESTE MUNDO...



É velho o sol deste mundo; 
velha, a solidão da palavra, 
a solidão do objeto; 
e o chão - o chão onde os pés 
caminham. 
Donde o pássaro voa para a árvore. 
Ferreira Gullar 
In "A Luta Corporal e Outros Poemas"

ACTO DE CONTRIÇÃO



Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei

— por tudo, vida, perdão!

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

sábado, 5 de abril de 2014

CONTRANARCISO



Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando estamos sós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

Paulo Leminski, 
in Toda Poesia

quarta-feira, 2 de abril de 2014

JOGO DA VERDADE



A verdade é um labirinto.

Se digo a verdade inteira,
se digo tudo o que penso,
se digo com todas as letras,
com todos os pingos nos is,
seria um deus-nos-acuda,
entraria um sudoeste
pela janela da sala.
Então eu digo
a verdade possível,
e o resto guardo
a sete chaves
no meu cofre de silêncios.

Roseana Murray
In Pera,Uva ou Maça.