sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

SONETO DO DESMANTELO AZUL



 
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos 
e colori as minhas mãos e as tuas,
 
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
 
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
 
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul.
Azul.
 
 
Carlos Pena Filho
 
 

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

EU ESTOU AQUI!



A divindade se foi,
como tanta ilusão da mocidade.
E embora perdido, sem novelo,
nas masmorras deste pesadelo,
hoje ao menos sei: homem humano,
brasileiro, precário,
escravo sou e por muitos anos,
ainda o serei. Mas a saída
não esqueci: lá, onde a luz
espera aqueles que não traíram
o melhor de si.
E ao pesadelo, aos suores frios,
ao terror da noite
e Deus minotauros, respondo
aos gritos, em nome
de todos os aflitos:
eu sou um homem!
eu estou aqui!


Eduardo Alves da Costa,
in Poesia Reunida

sábado, 21 de fevereiro de 2015

OBJETO SUJEITO




você nunca vai saber 
quanto custa uma saudade 
o peso agudo no peito 
de carregar uma cidade 
pelo lado de dentro 
como fazer de um verso 
um objeto sujeito 
como passar do presente 
para o pretérito perfeito 
nunca saber direito 
você nunca vai saber 
o que vem depois de sábado 
quem sabe um século 
muito mais lindo e mais sábio 
quem sabe apenas 
mais um domingo 
você nunca vai saber 
e isso é sabedoria 
nada que valha a pena 
a passagem prá pasárgada 
xanudu ou shangrilá 
quem sabe a chave 
de um poema 
e olha lá…

Paulo Leminski,
in Toda Poesia

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O GATO TRANQUILO




Ei-lo, quieto, a cismar, como em grave sigilo,
vendo tudo através a cor verde dos olhos,
onça que não cresceu, hoje é um gato tranqüilo.
A sua vida é um "manso lago", sem escolhos...

Não ama a lua, nem telhado a velho estilo.
De uma rica almofada entre os suaves refolhos,
prefere ronronar, em gracioso cochilo,
vendo tudo através a cor verde dos olhos.

Poderia ser mau, fosforescente espanto,
pequenino terror dos pássaros; no entanto,
se fez um professor de silêncio e virtude.

Gato que sonha assim, se algum dia o entenderdes,
vereis quanto é feliz uma alma que se ilude,
e olha a vida através a cor de uns olhos verdes.


Cassiano Ricardo

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

PARA ALÉM DA CURVA DA ESTRADA...




Para além da curva da estrada 
talvez haja um poço, e talvez um castelo, 
e talvez apenas a continuação da estrada. 
Não sei nem pergunto. 
Enquanto vou na estrada antes da curva 
só olho para a estrada antes da curva, 
porque não posso ver senão a estrada antes da curva. 
De nada me serviria estar olhando para outro lado 
e para aquilo que não vejo. 
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. 
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. 
Se há alguém para além da curva da estrada, 
esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. 
Essa é que é a estrada para eles. 
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. 
Por ora só sabemos que lá não estamos. 
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva 
há a estrada sem curva nenhuma. 


Alberto Caeiro, em "Poemas Inconjuntos" 
Heterônimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

CARNAVAL




Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha mascara, modela-a...
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!

Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer...

Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando...
E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval...

Modela a minha mascara!
Veste-me essas roupas!

Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo...
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma...
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir...

Cecília Meireles
Dispersos (1918-1964)


AS BELAS, AS PERFEITAS MÁSCARAS




As belas, as perfeitas máscaras de perfil severo
Que a morte, no silêncio, esculpe,
Encheram-se de uma estranha claridade...
Que anjos tocam, através do mundo e das estrelas,
Através dos sensíveis rumores,
O canto grave dos violoncelos profundos?
Alma perdida, vagabunda, Messalina sonâmbula,
insaciada...


Que procuras na noite morta, Alma transviada,
Com tuas mãos vazias e tristes?
Cantam os violoncelos... A noite sobe como um
balão...


Meus olhos vão ficando cada vez mais lúcidos...
Soluçam os violoncelos... Ah,
Como é gelado o teu lábio,
Pura estrela da manhã!



Mario Quintana;
in Aprendiz de Feiticeiro, 1950

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

NASCENTE AZUL


imagem by Igor Zenin


O meu mais infante e puro Amor
repousa além das mais próximas estrelas!
 
Caminha altivo e feliz, sobre todos
os cardos e engodos – origem da Dor.
 
Ele sabe o quanto lhe amo, o quanto
lhe quero; quanto lhe espero encontrar.
 
Sabe que um manso amanhecer haverá:
Capaz de nos reunir em congresso solar.
 
O meu mais infante e puro Amor
resgata, a cada dia, nossa cúmplice idade.
 
Assim cultivamos e mantemos harmonia
e alvo: o claro encontro noutra Cidade.
 
Sabemos que Aquém e Além não existem!
Nosso Tempo é doce brevidade – Alegria.
 
De pai para filho, um anoitecer não há:
Rapaz, cultiva o jardim de Luz em Nosso Lar.

 
 
*Jairo De Britto,
 em “Dunas de Marfim”
(Vitória, Espírito Santo/ Brasil - 28/12/2014)

SONHO, VIGÍLIA, NOITE, MADRUGADA...






Sonho, vigília, noite, madrugada?
Um a um, desfolhei os sete véus,
e adormecido o corpo, a alma acordada,
um a um, escalei os sete céus.

Sem limites de tempo nem espaço,
quanto tempo durou minha viagem?
Andei mundos sem dor e sem cansaço,
ficou, em meu lugar, a minha imagem.

Agora, de regresso, cumpro a pena.
Tudo esqueci dessa abismal distância
mas algo é diferente: volto à arena
com uma nova inocência, um gosto a infância.

Serena, com uma paz desconhecida,
aceito, sem revolta, a humana sorte:
viver, da Vida, esta pequena vida,
morrer, da Morte, esta pequena morte.



Fernanda de Castro,
in Poesia II





sábado, 14 de fevereiro de 2015

NUVENS (I)



Não há uma só coisa que não seja
nuvem. Assim são essas catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo alisa. A Odisséia, veja,
muda como o mar; há algo distinto
a cada vez que a abrimos. Seu velho
rosto já é outro, visto no espelho,
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A volumosa
nuvem que se desmancha no poente
é a nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
Você é nuvem, mar, esquecimento.
E é o que perdeu a cada momento.

Jorge Luis Borges
(Tradução : Marcelo Tápia)


SURPRESAS




Este menino tem sempre
cinquenta surpresas nos bolsos:
uma pedrinha encardida que,
diz ele, dá sorte na vida.
Uma bala amassada
que para alguma emergência
ele traz guardada.
Uma viagem de volta ao mundo
em um segundo
e uma entrada (permanente)
para o circo que fica montado
dentro de seu pensamento.


Roseana Murray,
in No Mundo da Lua

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

“BATISMO”




Mergulhei num mar de sonho
E me fiz azul.

Batizei-me...


Adélia Maria Woellner,
in Sons do Silêncio

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

OU... OU




A moça atrás da vidraça 
espia o moço passar. 
O moço nem viu a moça, 
ele é de outro lugar. 

O que a moça quer ouvir 
o moço sabe contar: 
ah, se ele a visse agora, 
bem que havia de parar. 

Atrás da vidraça, a moça 
deixa o peito suspirar. 
O moço passou depressa, 
ou a vida devagar? 


 JOÃO GUIMARÃES ROSA 
In Ave, Palavra, 1970 

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

APRENDIZ DE VIAJANTE




 
Um dia li num livro:
«viajar cura a melancolia».
 
Creio que, na altura, acreditei no que lia.
Estava doente, tinha quinze anos.
Não me lembro da doença que me levara à cama,
recordo apenas a impressão que me causara,
então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes
e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto,
persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
 
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos,
mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite...
Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti.
Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas,
apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude.
Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;
vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,
como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,
em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
e quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida,
se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidiana.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem  um modo de vida.
Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo.
Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma,
no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,
ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,
não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;
sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.
 
 
Al berto
em Anjo Mudo

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

DECEPÇÃO





Ando muito decepcionado com os homens
e comigo. 
Com minha geração, em especial. 
Íamos salvar o mundo
e falhamos. 
Alguns ainda tentam,
Não me iludem. 
Sem dúvida, merecíamos melhor sorte.
Nós –-- os ilustres fracassados
--- e o povo
que nem se dá conta
que tínhamos projetos ótimos para redimi-lo.


Affonso Romano de Sant'Anna


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

É POSSÍVEL




É possível que já não haja pássaros
a esvoaçar em torno das palavras
com que calei
o desespero das manhãs
quando tinha do cosmos
uma visão romântica.
Hoje nasce-me no olhar
uma luz quase cruel
com que ilumino
a linha de sombra
que me cerca as mãos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

domingo, 1 de fevereiro de 2015

PELAS LARGAS JANELAS ENTRA A NOITE...





Pelas largas janelas entra a noite quieta e um cheiro de frutos maduros,
Pelas janelas abertas chega até nós um perfume frio de estrelas.
Pelas janelas abertas penetra a mansa poesia dos caminhos, das
viagens noturnas com pássaros dormindo nas ramadas...

Oh!o sossego do lampião na mesa tosca,
E o sorriso do amor sobre os postais da parede!

Onde a música não chega, aí estaremos.
Onde o repouso se estender nascendo pelas madrugadas aí estaremos.
Estaremos confundidos pelos ramos virginais e pela nudez das campinas.

Estaremos misturados com os passarinhos das cercas.
Os ruídos dos trens cortarão nossos ouvidos.
Mas as nostalgias não estarão mais em nós,
Porque seremos simples como a noite,
Como a grande noite resinosa e infinita.

Augusto Frederico Schmidt,
in Coleção Melhores Poemas,
 seleção de Ivan Marques


ONDE ESTÃO

   



Onde estão as chaves
Que abriam os portões
Os quartos, as portas das casas
De outrora?

Onde estão as chaves?

Onde estão as casas
As chácaras, os sobrados,
Os pequenos quintais,
Os "chalets"
De outrora?

Onde estão as casas?

Onde estão os seres
Que esperávamos
Ansiosos
Na antecipação da infância?

Onde estão os seres?

Onde estão as amadas
Com as suas bolsas escolares
As suas merendas
E os seus segredos?

Onde estão as amadas?

Onde estão os medos...
Os pecados
Inconfessáveis
Os pressentimentos
As mãos inquietas
Pousando sobre
O incerto destino?

Onde estão os medos?

- Tudo isso se foi
Pelo caminho do frio.

Augusto Frederico Schmidt