quinta-feira, 30 de julho de 2015

IMPROVISO


Arte Laszlo Koday

... Até que um dia,
quando menos se espera,
surge uma casa dentro do sertão
surge outra casa dentro do sertão
surge outra casa uma porção de telhas novas cor
de brasa uma porção de casas.

E uma cidade como caixa de surpresa
listou de branco e de vermelho o silêncio da grota.
Um trem de ferro passa cheio de imigrantes...
(Há em seu apito como um grito de alvorada e de tristeza:
há em toda terra um choro típico de criança,
gosto de lágrimas misturadas com esperança).

Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS

quarta-feira, 22 de julho de 2015

DE SEDA




São pequenas as jarras de porcelana
onde deixámos os lírios brancos
que resistiram ao tempo da secura.
E quando os nossos olhos orvalhados
ficaram mais sensíveis à luz
do amanhecer juncámos o chão
que amamos com a brancura dos lírios.
De seda. Da sede: gota a gota.


Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

terça-feira, 21 de julho de 2015

QUADRO ANTIGO



Por certo que amo as coisas, os objetos,
que me acompanham, neste fim de viagem.
São elas, coisas, minhas cúmplices, à hora
em que, ó lua, me contas teus segredos.

São eles, os objetos, os meus símbolos,
para uma última fotomontagem.
Mas, como são — coisas e objetos — tristes,
por já não serem mais os meus brinquedos.

Em vão o calor físico os dilata.
Em vão meu pensamento lhes dilui
o acre contorno, em proustiana sondagem.

Só, contra o sol, a sombra deles flui!
no chão, na mesa, ou — colorida imagem —
no cristal onde nunca sou quem fui.

Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS


segunda-feira, 20 de julho de 2015

NOMES



Nomes com cheiro de mato:
corticeira,
guajuvira,
aroeira,
manacá.

Helena Kolody
in ‘Sinfonia da Vida’









sexta-feira, 17 de julho de 2015

FLORES




As flores do inverno vão se abrindo
em arbustos sem folhas
candelabros de ramos
que se aquecem
na débil luz que emana das corolas.
Falam em surdina, veladas de aroma,
as pétalas, bailarinas do pudor,
confidenciando nos vórtices secretos
dentro da pálpebra do dia sem calor.


Dora Ferreira da Silva (1918-2006)




sábado, 11 de julho de 2015

O SÓSIA



 
Dificilmente, ó amigo,
você me encontrará presente, em casa.
Pois eu sofro de ausência,
como se houvesse, em mim, uma asa.
 
A esperança e a saudade
— o leste e o oeste do meu corpo obscuro —
são duas formas de eu nunca estar em casa,
quando me procuram, e eu mesmo me procuro.
 
Vivo continuamente longe
de mim, nas horas em que me decomponho
num sonho; estou no outro hemisfério,
que é um não sei onde, onde só ausência lavra.
 
Só me encontro comigo, ó amigo,
se me divido em dois, diante do espelho
Um em frente do outro,
sem nenhuma palavra.


Cassiano Ricardo,
in A Face Perdida)

quinta-feira, 2 de julho de 2015

FADOS CONTRÁRIOS


Fotografia de Nelci Kaaletka


Diz à flor a borboleta:
‘Vamos, irmã, tudo é luz!
Há muito prisma doirado
Que pelos ares transluz…

Tuas pétalas são asas,
Das nuvens nas tênues gazas,
D’aurora nos seios nus
Tens um ninho entre perfumes…

Vamos boiar, entre os lumes
Desses páramos azuis’.
À linda fada dos ares
Responde a silvestre flor:

‘Eu amo o gemer das auras
E o beijo do beija-flor…
Se és do céu a violeta,
Sou da terra a borboleta...

Sigo um destino menor.
Buscas o céu – eu a alfombra,
Queres a luz – eu quero a sombra,
Pedes glória – eu peço amor’...”

Castro Alves
Em “Poesias Completas”,