terça-feira, 18 de abril de 2017

EU VI UMA ROSA





Eu vi uma rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.

A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta, 
Tão perto do chão,
Tão longe da glória
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.

Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira,

segunda-feira, 17 de abril de 2017

CAMPOS ENTARDECIDOS


 Arte Igor Zenin

O poente em pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
remanseou-se ao redor do vilarejo.
Os cincerros recolhem a tristeza
dispersa dessa tarde. A lua nova
é um fio de voz que vem do céu.
Conforme vai anoitecendo
volta a ser campo o vilarejo.

O poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
As cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.
No aposento vazio
a noite fechará os espelhos.

Jorge Luis Borges 
in Primeira Poesia


quinta-feira, 6 de abril de 2017

RETRATO INDIMENSIONAL





Meus pais estão no retrato
sorridentes. O sorriso
é claro e meigo. Entretanto,
bem sei que atrás dessa luz
há tanta dor concentrada!
Uma dor que não se fez
em dois dias, em um mês.
Ai! dor de toda uma vida!

É dor. Mas dor familiar,
feita de coisas miúdas
mais que de grandes desastres:
de pedaços de esperança,
de uma atenção infinita,
da rotina de cuidados
de amor diários —rotina
iluminada!—, de restos
de emoções desencontradas,
de vagos desgostos, vagos
presságios, sonhares vagos,
das precisas incisões
que rasga no rosto a cega,
lenta lâmina do tempo.

Vejo agora como a soma
de tantas dores dispersas,
como essa dor concentrada
alimenta a luz sublime
na sua face estampada.
Vejo-o como nunca o vira
no tempo deles. Agora,
fora do tempo e do espaço,
melhor que no espaço tempo,
melhor do que nunca e sempre,
as nossas luzes se encontram
num doce carinho antigo.

Alheios a tempo e espaço,
meus pais descem do retrato
e vêm conversar comigo.

Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)