quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

TEUS OLHOS




Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

Octavio Paz
(1914-1998)
in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli




terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AI DAQUELES...



ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.


Paulo Leminski
In Toda Poesia

PARA UMAS NOITES QUE ANDAM FAZENDO



deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem

quem sabe a lua lua 
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém

deixe ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém

Paulo Leminski
In O Ex-estranho

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O QUE RENASCE


- Que vais colher, plantar acaso?
- Há um sopro
de noite murcha nos quintais. É a hora.
- Hora de semear?
- De ter. De ir
buscando o que renasce.
- O que renasce?
- O que, incessante, de si mesmo flui.
- Vamos regar as flores desoladas,
semear luzes pelas ruas mudas
onde ninguém mais vela?
- O que renasce.
- Vamos levar ás árvores o sangue
das madrugadas, seiva aos caules, canto,
sol aos que choram, longe?
- O que renasce.
- Levar a vida , a vida que renasce,
aos que mortos se vão sem estar mortos?
- O que renasce.
- A vida?
- O que renasce.
- A morte?
- A vida.A morte. O que renasce.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto


DO AZUL, NUM SONETO



Verificar o azul nem sempre é puro.
Melhor será revê-lo entre as ramadas
e os altos frutos de um pomar escuro
- azul de tênues bocas desoladas.

Melhor será sonhá-lo em madrugadas,
fresco inconstante azul sempre imaturo,
azul de claridades sufocadas
latejando nas pedras - nascituro.

Não este azul, mas outro e dolorido,
evanescente azul que na orvalhada
ficou, pétala ingênua, torturada.

Recupero-o, sem ter, e ei-lo perdido,
azul de voz, de sombra envenenada,
que em nós se esvai sem nunca ter vivido.


Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do tempo











domingo, 23 de fevereiro de 2014

CREIO NAS PALAVRAS...



Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura

Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas

Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade

António Ramos Rosa,
in "Numa Folha, leve e livre"

sábado, 22 de fevereiro de 2014

LYA LUFT



 No instrumento de nossa orquestração
somos - junto com fatalidades,genética
e acaso - os afinadores e os artistas.
Somos, antes disso, construtores de
nosso instrumento. O que torna a lida
mais difícil, porém muito mais
instigante.

Lya Luft,
in Perdas & Ganhos

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A MEIO DO CAMINHO



Fico entre o céu e a terra,
Choro só para dentro.
Sou como a árvore nua
que ao alto os ramos indica:
ergue as asas, mas não voa,
tem raízes, mas não desce.

Alberto de Lacerda
in Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa










quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

VIAGEM




O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre o céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos

Mia Couto,
In Raiz de Orvalho e outros poemas








quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

VELHA CASA



Fomos ver a casa anunciada.
E nos demos conta
de que as casas, como as pessoas,
morrem.
Logo à entrada,
a cerâmica, arcaica,
mostrava como uns poucos anos
podem acumular o pó dos séculos.
Dentro, tapetes bordados a mão,
tipo casa-grande,
talvez portugueses,
bronzes antigos,
faianças,
vasos de plantas,
peças avulsas
de mobiliário nobre.
Tudo com a pátina,
a ronha,
a ferrugem,
o fungo,
o cuspo,
o vômito do tempo.
E, contudo,
podia-se sentir
—ainda! ainda!—
o amor que presidira
à feitura, à escolha,
à disposição
de tudo aquilo
em composições plásticas
de que emanava calor.
E no conjunto se multiplicava
da soma das peças o valor,
mercê da mais-valia
da poesia
e do amor.
Na parede da sala um retrato
lindo de mulher,
no escritório fotografias
de juventude,
contrastantes
com o bafio e o bolor.
Na casa abandonada
fizeram ninho vespas,
aranhas, mofo, enfim
a fauniflora do esquecimento,
solfejando morte, inferno e dor.
Ah! melancolia
de ver que nada somos,
nada valemos,
nada! Mas a lição
de que,
de tudo,
sobrevive,
só,
o que a alma tocou.

Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)




CANTO NEGRO



Sou negro.
A cor da noite adensa a minha pele
e estrela a minha alma.

Sou negro.
Absorvo toda a luz.
Sou amigo do Sol e da Lua.
São meus irmãos todos os seres da Terra.

Sou negro.
Meu sangue é ardente.
Meu pensamento é ardente.
O mundo é para mim o Verbo emocionado.

Sou negro.
E, como a natureza ama o contraste,
amo as mulheres de pele branca e cabelo macio.
Mas, como o coração é um sol
consumindo-se em fogo,
amo as mulheres de pele noturna e sexo forte.
E com todas vou forjando o dia, a tarde e a noite.

Sou negro.
Com meu suor e meu sangue,
meu desespero e minha revolta,
minha dedicação e minha brandura,
minha força e meu sonho,
modelo em bronze e nuvem
o quinhão de humanidade que me coube.

Sou negro.
Meu coração não é incolor,
minha alma não é pálida.
Caminho com meus irmãos de todos os tons.
Juntos, numa ciranda ainda feroz de semelhantes e contrários
mas que do alto Deus vê de mãos entrelaçadas,
vamos fazendo de matéria nobre
—este barro pobre,
esta liga impura—
a luz comum futura.

Sou negro.
E sou branco e amarelo e vermelho e moreno.
E verde.
E azul.

Sou todo o espectro da alma.

Sou homem.


Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)
















DESGOVERNO



Por um momento,
deixar que as emoções tomem o leme
e experimentar o sabor da tempestade.

Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)










SILÊNCIO




: : : : : : : :

Escuto, na solidão,
crescer as relvas da infância
nos vales do coração.

Anderson Braga Horta
Cronoscópio (1983)



terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

TALVEZ



Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste:
talvez.
Esta é a única palavra
que não tem casa.
Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio…

- Albano Martins -
in Palinódias, palimpsestos

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ONDE A POESIA SE EXIBE



Onde a poesia se exibe como um espectáculo espectacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia

António Ramos Rosa










OS PÁSSAROS E AS ÁRVORES


Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
... Os pássaros começam onde as árvores acabam
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
Quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
Mas deixo essa forma de dizer ao romancista
É complicada e não se da bem na poesia
Não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo,
in "Todos os Poemas"









quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ANDA O TEMPO



Olha o tempo, caído nessas pétalas
e evaporado nessas vagas nuvens,
olha-o no olhar e no sorriso
em que os belos rostos se desfolham.

Anda o tempo, anda o tempo, o sem-cessar
abrindo flores e fechando pálpebras;
com pés de névoa e de silêncio anda
frutas e corações amadurecendo.

Ouve o passo do tempo como pisa
meu coração, as uvas e os sonhos;
ouve o rio do tempo como cruza
terras floridas, jovens comarcas...

Vem, senta-te à direita de minha alma,
à margem do rio do crepúsculo,
e oponhamos ao tempo, ao inimigo,
a doçura de sermos dois na tarde.


Eduardo Carranza
In: Antologia Poética






AFINIDADE




A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.
É o mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade,
qualquer reencontro retoma a relação,
o diálogo, a conversa,
o afeto no exato ponto em que foi interrompido.

Afinidade é não haver tempo mediando a vida.
É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo para o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.

Ter afinidade é muito raro.
Mas quando existe,
não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento,
irradia durante e permanece
depois que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim,
sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido
a respeito dos mesmos fatos que impressionam,
comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavras.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com, nem sentir contra,
nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente,
mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado,
não para eles próprios.

Sentir com, é não ter necessidade de explicar
o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar, ou, quando é falar,
jamais explicar: apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças.
É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades exercidas
quanto das impossibilidades vividas.

Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou
sem lamentar o tempo de separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser,
cada vez mais a expressão do outro
sob a forma ampliada do eu individual aprimorado.


Artur da Távola


MIA COUTO




“Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de
combater a pobreza.E todos nós, de modo generoso e
patriótico, queremos participar nessa batalha.
Existem, no entanto, várias formas de pobreza.
E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos
indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão
sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos
como sujeitos históricos,como lugar de partida e como
destino de um sonho.“

(Mia Couto)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O TEMPO EXISTE




Existe um tempo que sequer sentimos,
existe um tempo que sequer pensou-se,
existe um tempo que o tempo não trouxe,
existe um tempo que sequer medimos.

Existe mais: um tempo em que sorrimos,
diferente do tempo em que chorou-se,
e um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!

Existe um tempo pior do que ruim
e um tempo amado e um tempo de canção,
existe um tempo de pensar que é o fim.

Tempo é o que bate em nosso coração:
um tempo acumulado em tempo-sim,
e um tempo esvaziado em tempo-não.



Francisco Miguel de Moura


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

CITAÇÃO


"Até onde posso vou deixando o melhor de mim...
Se alguém não viu,foi porque não me
sentiu com o coração."

- Clarice Lispector -