quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VAI, ANO VELHO





1

Vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum , prá trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,,
a casa e o coração.

Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.


2

Vem Ano Novo, vem veloz
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz, moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
-de utopia.

Vem na areia da ampulheta como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se

se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol da gema no Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

3

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.

Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.

Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso  Romano de Sant’Anna





segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

NAS CASAS ABANDONADAS




Nas casas abandonadas, as silvas
vão tecendo as rédeas do tempo.
A terra inquieta fende o cimento
afagado, desfaz a cal das paredes,
contamina alvenarias.
Um declínio de pássaros na poeira
da tarde, desfoca as mãos
dos que morreram com as árvores.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

É NATAL




É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia


Eugénio de Andrade,
in: Rente ao Dizer

COMPRAS DE NATAL




A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.
Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que
não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que
jamais estiveram no céu.

As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro:
enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios
de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam 
representar beleza e excelência.

Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos,
deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo 
de animais, em Belém.

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, 
grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, 
até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última 
nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime,
nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto
bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem
todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de 
comprar se reveste de exigências particularmente difíceis.
Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à
nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir
o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. 
Não devemos também oferecer nada de essencialmente
necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece
consistir na sua desnecessidade e inutilidade.
Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) 
de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por
 estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma 
boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que 
— especialmente neste verão — teremos de conquistar o 
pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto
extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa
alguma.

Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação,
organizam suas sugestões para os compradores,
valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão.
Numa grande caixa de plástico transparente
(que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane
(que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor
(que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete),
e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. 
Todos ficamos extremamente felizes!

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os
estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, 
os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos
parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão.
E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável
— apenas o Meninozinho nas suas palhas,
a olhar para este mundo.


Cecília Meireles
In: Quatro Vozes
Rio de Janeiro, 1998, pág. 80.








sábado, 20 de dezembro de 2014

LIÇÃO




A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.

Helena Kolody 
In “Poesias escolhidas”




"NOSTÁLGICA N.º 2"




Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza em meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida




NÃO SEI





Não sei onde começa o céu e nem acaba.
O infinito se dissolve como números na névoa.
Vou-me, porque a voz que chama é a mesma que chamava.
Será a mesma, acaso, a mão que ainda me leva?



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

RITOS QUE AS HORAS CALMAS...




Ritos que as Horas Calmas 
      Ao entardecer 
Fazem com as almas 
      Sem se conhecer... 
E que em voos de ânsias 
      Põem espirituais distâncias 
Entre olhar e ver.

Turíbulos que a Tarde 
      Oscila no ar 
Donde a névoa arde 
      Cor desde cansar... 
Arco dos balanceados 
Turíbulos os raios do sol fechados 
      Na destreza do ar

Fim de missas no Poente 
      Bênçãos ainda são 
Luz branca e cinzas entre 
      Terra e coração 
Saem os fiéis p’la aberta 
Porta da paisagem que se deserta... 
      ...Sinos sem perdão...


 
Fernando Pessoa
In Poesia 1902/1917


domingo, 14 de dezembro de 2014

COMO UM EMBALO




Fosse uma chama, crepitaria
sob meus dedos, na solidão.
Nada mais quero, nada queria.
As noites chegam, os dias vão.

Fosse uma chama, breve arderia,
brasa de sonho, na escuridão.
Já nada quero da luz do dia...
Queima uma estrela na minha mão.

Mas nada quero da luz da estrela...
(Chegam as noites, os dias vão.)
Por que sonhá-la, se vais perdê-la,
alma perdida na solidão?


Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976

sábado, 13 de dezembro de 2014

CASA



A antiga casa que os ventos rodearam 
Com suas noites de espanto e de prodígio 
Onde os anjos vermelhos batalharam 

A antiga casa de inverno em cujos vidros 
Os ramos nus e negros se cruzaram 
Sob o Íman dum céu lunar e frio 

Permanece presente como um reino 
E atravessa meus sonhos como um rio 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Geografia


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

ASAS E AZARES




Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.

Paulo Leminski,
in DISTRAÍDOS VENCEREMOS

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

NUNCA SEI AO CERTO...





Nunca sei ao certo 
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé

certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé


Paulo Leminski
In Ex-estranho



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

PEQUENO POEMA




Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...



SEBASTIÃO DA GAMA
in ANTOLOGIA POÉTICA 
(edição póstuma)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

DÁ-ME TUA MÃO...





Dá-me tua mão, e dançaremos;
dá-me tua mão, e me amarás.
Uma única flor seremos
uma só flor, e nada mais...

A mesma estrofe cantaremos,
ao mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos
como uma espiga, e nada mais...

Chamas-te Rosa, eu Esperança;
mas o teu nome olvidarás,
porque seremos uma dança
sobre a colina, e, nada mais...

Gabriela Mistral 
(Tradução de Tasso da Silveira)

domingo, 30 de novembro de 2014

PÉTALAS




Violetas derramam luz roxa
no parapeito branco da janela.
Toco em suas folhas de veludo escuro
e por um momento
minhas mãos se tornam pétalas.


Roseana Murray
In Todas as Cores Dentro do Branco





sexta-feira, 28 de novembro de 2014

"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."





Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"SONS PERDIDOS"





Vês o céu, a campina, a natureza,
Este campo infinito de poesia?
Vês as nuvens doiradas que se agitam
Ao cair da neblina em pleno dia?

Vês as garças que pairam sonolentas
Nesta praia isolada que me inspira?
Pois, cantor, o que vês, tudo pertence
Da minh'alma sonora à rude lira.

Serenatas de brisa - vozes soltas
De folhagem bolida pelo vento,
tudo n'alma me cai como um idílio,
Tudo acolhe a sorrir meu pensamento.

Amo a terra somente pelas flores,
Pelas brumas azuis do alvorecer,
Pelas asas gentis das borboletas
Que me fazem de inveja estremecer.

Amo o céu à tardinha pelas cores
Que ele ostenta a sorrir ao pôr-do-sol;
Amo os raios da lua em noite bela...
Amo as nuvens fagueiras do arrebol.

Amo as brisas do mar - as brisas mansas
Que me inspiraram sonhos de alegria;
Que embalsama a terra onde adormeço
Ao balanço da rede em pleno dia.

A minha alma é formada de harmonias
E só vive de luz, de vibrações;
Como a flor que viceja à beira d'água,
Ela vive a cantar nas solidões.



Júlia da Costa 
em 'Flores Dispersas'
 





terça-feira, 25 de novembro de 2014

DOIS E DOIS SÃO QUATRO




Como dois e dois são quatro 
Sei que a vida vale a pena 
Embora o pão seja caro 
E a liberdade pequena 
Como teus olhos são claros 
E a tua pele, morena 
como é azul o oceano 
E a lagoa, serena 




Como um tempo de alegria 
Por trás do terror me acena 
E a noite carrega o dia 
No seu colo de açucena 



- sei que dois e dois são quatro 
sei que a vida vale a pena 
mesmo que o pão seja caro 
e a liberdade pequena.



Ferreira Gullar







domingo, 23 de novembro de 2014

MINHA TERRA




Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha. 
– Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha. 

Correi pras bandas do sul: 
Debaixo de um céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil. 
– É uma terra de amores, 
Alcatifada de flores, 
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de abril. 

Tem tantas belezas, tantas, 
A minha terra natal, 
Que nem as sonha o poeta
E nem as canta um mortal! 
– É uma terra encantada
– Mimoso jardim de fada –
Do mundo todo invejada, 
Que o mundo não tem igual.



Casimiro de Abreu (1839-1860)
in Primaveras


sexta-feira, 21 de novembro de 2014

SEI QUE DEUS MORA EM MIM...



Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
Sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para Sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha. 

Adélia Prado
In: Oráculos de Maio, p. 73


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

MUSICA PARA UM HINO



É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser LIVRE, LIVRE, LIVRE.

Manuel Alegre
in O CANTO E AS ARMAS


domingo, 16 de novembro de 2014

ESPERANÇA



Muitos são os que carregam
água na peneira,
como disse o poeta Manoel de Barros,
e esperança como estrela
na lapela.
Muitos são os que acreditam
em coisas simples e limpas,
em coisas essenciais,
amor, amizade, delicadeza,
paz,
e tantas outras palavras,
antigas e urgentes.


Roseana Murray
Manual da Delicadeza de A a Z


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

AUTO-RETRATO FALADO




Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer da moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.


- Manoel de Barros,
 do "Livro das Ignorãças"


19/12/1916 - 13/11/2014


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

SOLAR



“Minha mãe cozinhava exatamente: 
Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. 
Mas cantava”. 

Adélia Prado,
in Chorinho Doce

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O LADO FATAL



 
 
Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. 
 
II 
 
Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade. 
 
III 
 
Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda. 
 
IV 
 
Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu. 
 
Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais. 
 
 
Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira. 
 
Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz. 
 
Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo). 
 
Sobrevivo, mas pela insensatez. 
 
VI 
 
Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida. 
 
VII 
 
Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco. 
 
Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu. 
 
Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui. 
 
VIII 
 
O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar? 
 
De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar. 
 
XIX 
 
Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange. 
 
Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca. 
 
 
Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos. 
 
"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias. 
 
Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos. 
 
XI 
 
O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.) 
 
XII 
 
Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.) 
 
XIII 
 
O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança 
 
XIV 
 
Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz. 
 
Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida. 
 
Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear. 
 
Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida. 
 
XV 
 
Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui. 
 
Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade. 
 
XVI 
 
Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta. 
 
XVII 
 
Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco: 
 
quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram. 
 
Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.
 
 
- Lya Luft, 
em “O lado fatal”. 1988.
 
(O poema foi escrito para Hélio Pellegrino 
após a sua morte)

(1924-1988).
 
 
 
 
 




EXCERTO LITERÁRIO



Eu gosto do absurdo divino das imagens.


Manoel de Barros ,
in- Menino do Mato

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

NO LABIRINTO




As perguntas que, criança,
eu me fazia
                     continuam
                     na idade adulta
a prosperar.

O labirinto agora me é mais familiar
tenho conversado com o Minotauro
e Ariadne 
                  tem infindáveis novelos 
para me emprestar .
Sou capaz de guiar um cego
por algumas quadras
e alguns sinais abstratos
chego a decifrar.

Habito o mistério que me habita
e isto 
                          -é caminhar.

Affonso Romano  de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

RUGAS



Estou amando tuas rugas, mulher. 
Algumas vi surgir, outras aprofundei.

Olho tuas rugas. 
Compartilho-as, narciso exposto
no teu rosto.

Ponho os óculos
para melhor ver tua pele
as minhas/ tuas marcas.

Sei que também me lês
quando nas manhãs percebes
em minha face o estranho texto
que restou do sonho.

O que gastou, somou. 
Essas rugas são sulcos
onde aramos a messe do possível amor.


Affonso Romano de Sant'Anna,
In Intervalo Amoroso & Outros Poemas Escolhidos




domingo, 2 de novembro de 2014

RIO GRANDE ACIMA*




Ouro, prata, cascalho, cal, barro.
O rio
e a flora Vida que acolhe e afronta.
 
Água, areia, árvores, frutas, faro.
O rio
e a fauna que há séculos alimenta.
 
Rumo País acima sobre eras além.
O rio,
seus braços, boca e veia
amazônica - no bravo dorso de Belém.
 
Avanço com o grande rio;
avisto Atlântico oceano - delta além.
 
Avanço com o grande rio,
vomito peixes, estrelas, rimas fáceis.
 
(Saúdo a bendita companhia dos botos)
 
Avanço com o grande rio,
seu visceral odor e perene casto lavor.
 
Avanço com o grande rio,
suas artérias abertas; sua cara dor.
 
Enveredo por sua atávica coreografia;
sua capilaridade que revela orgânico plano.
 
Armo redes, deito esteiras rente ao mar:
naquele espoucar de estrelas, aspiro
cometas insanos em sua trajetória sã.
 
Olhar e ver; avançar com o grande rio,
fauna e floresta afoitas, a força do Verde,
que tudo abarca - nunca é tarefa vã!
 
 
*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"

REFLEXÃO PARA O DIA DE FINADOS



Morrer, enfim, é realizar o sonho
que todas as crianças têm...
O motivo? Só elas sabem muito bem:
Fugir... fugir de casa!

Mario Quintana ,
in Velório sem defunto - 1990





sexta-feira, 31 de outubro de 2014

CHOVE




Chuva
Chuva
Chuva
Vontade
Chuva
De fazer não sei bem o que seja
Vontade de escrever Sagesse, de Verlaine
E a tarde gris, tão viúva,
Vai derramando perenemente
as suas lágrimas de chuva
Abundantes
Como lágrimas de fita cômica
Cômica
Cômica

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

POÇAS D'AGUA




As poças d’água são um mundo mágico
Um céu quebrado no chão
Onde em vez das tristes estrelas
Brilham os letreiros de gás Neon.

Mario Quintana,
in Preparativos de viagem


O ANTINARCISO



Esse estranho que mora no espelho
(e é tão mais velho do que eu)
olha-me de um jeito de quem
procura adivinhar quem sou.

Mario Quintana,
in Caderno H


HAI-KAI DE PRIMAVERA



Tua orelha num frêmito desnuda-se:
O que seria
O que seria que te disse o vento?!

Mario Quintana,
in Preparativos de Viagem

ESTA GENTE



Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 


 Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in "Geografia",


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

ASA IMÓVEL




O barco, com sua braçada
de flores, cheio de terra.

Asa imóvel, desterrada
aventura, que se encerra.

Ausente de tudo, absorto,
sem dor, sem mar, sem cansaço,

abismado em seu espaço:
- barco enfim chegado ao porto.


Hélio Pellegrino
In: Minérios Domados

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

TRIUNFO DAS NULIDADES



(excerto de discurso parlamentar)

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver
 prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça,
 de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,
 o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra,
 a ter vergonha de ser honesto."

 Rui Barbosa 
in Obras Completas 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A UM TRISTE



Outras almas talvez já foram tuas:
Viveste em outros mundos... De maneira
Que em misteriosas dúvidas flutuas,
Vida de vidas múltiplas herdeira!


Servo da gleba, escravo das charruas
Foste, ou soldado errante na sangueira,
Ou mendigo de rojo pelas ruas,
Ou mártir na tortura e na fogueira...


Por isso, arquejas num pavor sem nome,
Num luto sem razão: velhos gemidos,
Angústias ancestrais de sede e fome,


Dores grandevas, seculares prantos,
Desesperos talvez de heróis vencidos,
Humilhações de vítimas e santos...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


DEFESA




Cada alma é um mundo à parte em cada peito...
Nem se conhecem, no auge do transporte,
Os jungidos do vínculo mais forte,
Almas e corpos num casal perfeito:

Dormindo no calor do mesmo leito,
Votando os corações à mesma sorte,
Consigo levam à velhice e à morte
Um recato de orgulho e de respeito...

Ficam, por toda a vida, as duas vidas
Na mais profunda comunhão estranhas,
No mais completo amor desconhecidas.

E os dois seres, sentindo-se tão perto,
Até num beijo, são duas montanhas
Separadas por léguas de deserto...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MISSA



Na singela capela
há um pêndulo oficiante.
Enquanto no altar claro
o sacerdote invoca o Eterno,
em cânticos ardentes
e inenarráveis gemidos
o pêndulo vai marcando, 
vai contando
inexoravelmente
os minutos perdidos.


Tasso da Silveira 
Poemas de Antes – l.966 –

domingo, 19 de outubro de 2014

ANTES QUE A TARDE AMANHEÇA...



Antes que a tarde amanheça
e a noite vire dia
põe poesia no café
e café na poesia.

Paulo Leminski,
in Toda Poesia






RETRATO ANTIGO



Quem é essa que me olha
de tão longe,
com olhos que foram meus?

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho


FLORAL




É isso.É primavera.
estou feliz, em febre.
Outros
politizam suas dores.
Eu
me polenizo
ou polemizo
- com as flores.


Affonso Romano de Sant'Anna,
in Poesia Reunida






segunda-feira, 13 de outubro de 2014

AMO A MANSIDÃO




A mansidão eu amo e sempre que entro
pelos ermos umbrais da escuridão
abro os olhos para enchê-los
da doçura dessa paz.


A mansidão eu amo sobre todas
as coisas deste mundo.


Na quietude das coisas eu descubro
um canto enorme e mudo.
E quando elevo os olhos para o céu
no estremecer das nuvens eu encontro,
na ave que cruza o espaço e até no vento
a doçura que flui da mansidão.

Pablo Neruda,
in "Cadernos de Temuco"

domingo, 12 de outubro de 2014

PROCURA-SE ALGUM LUGAR DO PLANETA



onde a vida seja sempre uma festa
onde o homem não mate nem bicho nem homem
e deixe em paz
as árvores na floresta.
Procura-se algum lugar no planeta
onde a vida seja sempre uma dança
e mesmo as pessoas mais graves
tenham no rosto um olhar de criança.


Roseana Murray
in Classificados Poéticos, ed. Moderna

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

CADA PALAVRA UMA FOLHA




Cada palavra uma folha
no lugar certo. 

Uma flor de vez em quando
no ramo aberto. 

Um pássaro parecia
pousado e perto.

Mas não: que ia e vinha o verso
pelo universo. 

Cecília Meireles.
de Metal Rosicler





sábado, 4 de outubro de 2014

O DOCE CONVÍVIO




Teus silêncios são pausas musicais.

Mario Quintana,
in Caderno H 




DA RELATIVA REALIZAÇÃO



Mover-se com a máxima amplitude
dentro dos próprios limites...

Mario Quintana,
in Caderno H






BIOGRAFIA




Entre o olhar suspeitoso da tia
E o olhar confiante do cão
O menino inventava a poesia...

Mario Quintana,
in Apontamentos de história sobrenatural