quarta-feira, 12 de outubro de 2016
OLHA-ME RINDO UMA CRIANÇA
Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.
Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.
Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.
Fernando Pessoa
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
LAR
Lar é onde se acende o lume e se partilha mesa
e onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde.
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam:
um estalar de madeiras, um ranger de degraus,
um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros,
como se eles estivessem ali desde o princípio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade no tecto,
o pequeno defeito do caixilho,
são imutáveis como uma assinatura reconhecida.
Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes
nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam.
Rosa Lobato Faria ,
in "O Sétimo Véu"
domingo, 2 de outubro de 2016
APRENDENDO A VERBEJAR*
Engatinhar
sem rumo previsto.
Nunca aceitar imposto
diverso caminho.
Balbuciar,
sem uso bem visto,
em inverso e vário
mais atrevido abuso.
Até silabar,
de repente, a mesma
palavra frequente
como original avatar.
Repetir
tudo aquilo,
num grave grito aflito,
e num arguir tranquilo.
Dizer,
diante da vida
e da morte, Tudo:
Antes do fim previsto!
Até um dia sentir
o saber, a dor,
a alegria e gosto
da frase inédita:
Todos os tempos do Verbo
inquieto – a dieta angélica,
a gramática rupreste,
a tempestade que invade
a majestade da Língua!
(Essa, a glória profana;
a ousadia do bardo bárbaro Ser!)
Jairo de Britto,
em “Aquarela da Madrugada”
Vitória, Espírito Santo - Brasil
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