sexta-feira, 28 de agosto de 2015

ANOITECER


 
Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?
 
Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.
 
A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.
 
E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.
 
Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.
 
Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim — as palavras —
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.


 Cassiano Ricardo,
in POESIAS COMPLETAS

MADRIGAL



"A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:


'Era uma vez uma flor,
Nasceu à beira de um Poeta...'

Vês como é simples e linda? 


(O resto conto depois,
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois)."




Sebastião da Gama ,
in 'Antologia Poética' 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

EXCERTO LITERÁRIO



Parabéns, querido neto Felipe

O neto é a hora
do carinho ocioso e estocado, 
não exercido nos próprios filhos e que 
não pode morrer conosco.
Por isso, os avós são tão desmesurados e 
distribuem tão incontrolável afeição.
Os netos são a última oportunidade de
reeditar o nosso afeto.

Affonso Romano de Sant'Anna,
in Melhores Crônicas

GORJEIOS




Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
 
Manoel de Barros  
In Poesia Completa