segunda-feira, 30 de junho de 2014

DE QUE SÃO FEITOS OS DIAS?



De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...


Cecília Meireles
In Canções

A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADAa


I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


Fernando Pessoa
in Novas Poesias Inéditas.


domingo, 29 de junho de 2014

AS RUAS



No tempo 
em que havia ruas, 
ao fim da tarde 
minha mãe nos convocava: 
era a hora do regresso. 
E a rua entrava 
connosco em casa. 
Tanto o Tempo 
morava em nós 
que dispensávamos futuro. 
Recolhida em meu quarto, 
a cidade adormecia 
no mesmo embalo da nossa mãe. 
À entrada da cama, 
eu sacudia a areia dos sonhos 
e despertava vidas além. 
Entre casa e mundo 
nenhuma porta cabia: 
que fechadura encerra 
os dois lados do infinito? 

MIA COUTO 
In Tradutor de chuvas, 2011



sábado, 28 de junho de 2014

A CANOA



Rompida de brechas, carcomida
por anos sem conta de luta no mar,
a velha canoa dos pescadores
foi arrastada para a planície,
foi exilada em terra firme,
longe do mar.
 
Mas veio o crepúsculo, e pôs distâncias no horizonte.
 
E a planície fremiu ansiadamente ...
 
... como se tivesse vontade de ser água
para a canoa navegar ... 
 
 
Tasso da Silveira
in Poemas




quinta-feira, 26 de junho de 2014

FIM DE JORNADA


 
Caminhar ao encontro da noite.
Como o camponês regressa ao lar.
Após um longo dia de verão.
 
Sem pressa ou cuidado.
Na tarde ouro e cinza.
Sozinho entre os campos lavrados.
E as colinas distantes.
 
Caminhar, ao encontro da noite.
Sem pressa ou cuidado.
A noite é somente uma pausa de sombra.
Entre um dia e outro dia.
 
 
Helena Kolody,
in Vida Breve

PENUMBRA




Já se aprofundam as raízes
no repouso do silêncio.
Cresce o musgo nas fundas cicatrizes.
Levita a fronde.
Na penumbra dos ramos,
tímido pássaro
inicia um canto de eternidade.

Helena Kolody ,
in Viagem no Espelho

terça-feira, 24 de junho de 2014

OH AS CASAS...




Oh as casas as casas as casas as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas


Ruy Belo,
in Todos os Poemas


VEM VENTO, VARRE!




Vem vento, varre
Sonhos e mortos.
Vem vento, varre
Medos e culpas.
Quer seja dia,
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.

Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
De raiz funda.
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.
Vem vento, varre!

Adolfo Casais Monteiro

segunda-feira, 23 de junho de 2014

NO MEU JARDIM



No meu jardim aberto ao sol da vida,
Faltavas tu, humana flor da infância
Que não tive...

E o que revive
Agora
À volta da candura
Do teu rosto!

O recuado Agosto
Em que nasci
Parece o recomeço
Doutro destino:

Este, de ser menino
Ao pé de ti...

MIGUEL TORGA, in DIÁRIO VIII
(Antologia Poética)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A CASA DO TEMPO PERDIDO




Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.


Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.


Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.


Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 16 de junho de 2014

POEMA INFINITIVO



A Dante Milano

Valorizar toda manhã de sol
como se a derradeira fosse.
Toda manhã de sol sobre a verdura
como se nunca mais houvesse.
Sentir que a vida é ainda boa e amiga
feito na antiga meninice.
E não temer a morte soberana
que se engalana para o enlace.


Fernando Py
in 70 Poemas Escolhidos

FUI EU



Fui eu esse menino que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.

Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.

Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.

__Fernando Py, 
Poema da Antologia"Fui Eu".







domingo, 15 de junho de 2014

ÁRVORE



Árvore

Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus
seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul
E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as 
árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se 
transformara,envaidecia-se quando era nomeada para o
entardecer dos pássaros e tinha ciúmes da brancura que
os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.

Manoel de Barros,
in Ensaios Fotográficos








sexta-feira, 13 de junho de 2014

A VIAGEM



Vamos ser velhos ao sol nos degraus
da casa; abrir a porta empenada de
tantos invernos e ver o frio soçobrar
no carvão das ruas; espreitar a horta
que o vizinho anda a tricotar e o vento
lhe desmancha de pirraça; deixar a
 
chaleira negra em redor do fogão para
um chá que nunca sabemos quando
será – porque a vida dos velhos é curta,
mas imensa; dizer as mesmas coisas
muitas vezes – por sermos velhos e por
serem verdade. Eu não quero ser velha
 
sozinha, mesmo ao sol, nem quero que
sejas velho com mais ninguém. Vamos
ser velhos juntos nos degraus da casa –
se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não
atravesses a rua por uma sombra amiga,
trago-te o chá e um chapéu quando voltar.
 
Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 12 de junho de 2014

FORMATAÇÃO DA AMIGA REGINA HELENA


SONETO DA FIDELIDADE



De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes,
in "Antologia Poética"

quarta-feira, 11 de junho de 2014

CANÇÃO



Deslumbra-te, agora,
com essa luz. é tua!
Tua ausente embora
numa ausente rua.

Nunca te atormente
sabê-la perdida.
Renasce fremente
como a própria vida.

Como a vida feita
de noite e de espera,
canção imperfeita
de anjo e de fera.

Deslumbra-te, eia!
com esta luz que mais se alteia
quando tudo rui.


Alphonsus de Guimaraens Filho
Discurso no Deserto (1975-1981)



SONETO DA ESPERA INÚTIL



No outro lado de mim mora a criança,
neste lado onde estou é noite fria:
- lancei mão dos pincéis da fantasia
para tornar real minha esperança,

pintar meu ser com as cores da alegria;
então achei a minha semelhança
no menino que fui, não na lembrança
do mundo que perdi e onde vivia.

Se o sonho andei, cruzei meu labirinto
na modelagem abstrata do poema,
virgens manhãs bebi no extinto lago;

e a dor que não senti agora sinto
na amarga solidão, no amargo tema
em que ontem naveguei e hoje naufrago.


Colombo de Souza
in: O Anúncio do Acontecido

segunda-feira, 9 de junho de 2014

SECURA VERDE



É verde esta secura, como é verde
a raiz duma planta que secou.
Posso ter o corpo aberto
e não mostrar o que sou.

Meus versos podem ser tristes
e eu ter profunda alegria.
Aves noturnas que buscam,
inquietas, a luz do dia.

Albano Martins
in Secura Verde e outros poemas
-1950-1953-

sábado, 7 de junho de 2014

ESCRITO A VERMELHO



Também ainda não disseste
(e é bom que o faças
antes que anoiteça)
que foi ao serviço
duma causa
que vieste. Não lhe dirás
o nome, nem é preciso,
julgo eu. Basta que se saiba
que foi com o sangue
que sempre o escreveste. E bastará
por isso que leiam
os teus versos. Porque
em todos eles
está escrito a vermelho.

Albano Martins

in Escrito a vermelho

FOLHAS



Repara: sem vento as folhas
são como o sono apenas.
Corpos ao relento,
que da morte se esquecem.

Albano Martins,
in Escrito a vermelho

sexta-feira, 6 de junho de 2014

DÊEM-ME



um arco e recriarei a infância,
os tordos sob a neve,
o rio sob as tábuas.
Dêem-me
a chuva e a gávea
duma figueira,
a flor dos eucaliptos,
um agapanto de água.

Albano Martins
in:Vertical

quinta-feira, 5 de junho de 2014

GUARDADOR DE REBANHOS


"...

Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr do sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria o fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

..."

Fernando Pessoa -
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos

O GUARDADOR DE REBANHOS


"Se às vezes digo que as flores sorriem
Se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque sou só essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
É a Natureza a despertar!"

Fernando Pessoa -
(Alberto Caeiro) in O Guardador de Rebanhos


NÉVOA...



"Névoa... A manhã é névoa e o dia é este...
Que quero eu dele ou ele quer de mim?
Quero que a minha angústia nada ateste
De si, nem de quem quer um fim...

Quero que a manhã seja como é,
Porque o seria sem o eu querer;
E que eu tenha esse resto vil de fé
Que é ainda querer viver..."

Fernando Pessoa
in Poesia


quarta-feira, 4 de junho de 2014

A RUA



A rua é um rio de pessoas e de vozes,
um rio terrível que me vai levando,
mas estou só, como se está na infância...
ou quando a morte vai se aproximando...

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um vôo de andorinha na distância
é a minha saudade que eu te mando.

Mas tu, nesses tumultuoso rio,
não fica nunca ao fundo da lembrança
como no seio azul de um redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
onde uma flor,às vezes, fica presa
e um claro riso sobre as águas dança!

Mario Quintana -
In Baú de Espantos

terça-feira, 3 de junho de 2014

ENTRE O LUAR E A FOLHAGEM...


Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.

Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade,
Atrai e doi.
Segue-o meu ser em liberdade.

Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Não é nem faz,
Só de segui-lo me perdi.

Fernando Pessoa
In Cancioneiro


DIZES-ME



Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.


Fernando Pessoa
In Poemas Inconjuntos

segunda-feira, 2 de junho de 2014

CONSELHO



Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Eugénio de Andrade,
in  Primeiros poemas





domingo, 1 de junho de 2014

A BALADA DAS FOLHAS



No crepúsculo de gaze
E ouro, anda alguém a cantar
Uma cantiga que é quase
Um choro humano, pelo ar...
Pensativo, os olhos ponho
Nas folhas, - vida que vai
A extinguir-se, sonho a sonho, 
Em cada folha que cai...

A primeira é verde e é linda.
Porque o vento a desprendeu ?
Não tinha vivido ainda,
Não tinha amado e morreu.
Vento do Destino avança,
E num soluço, num ai,
Cai um mundo de esperança
Na folha humilde que cai.

A segunda é a folha morta, 
Passado... Desilusão...
Mal o vento os ramos corta, 
Ela adormece no chão...
É a saudade, - folha da alma –
Que no tormento se abstrai
E vive da morte calma
De cada sonho que cai.

OFERENDA:

No crepúsculo indeciso
Da vida, me martirizo
Por um sonho que se esvai...
Caem folhas... Chorei !...
Há uma lágrima, um sorriso...
Em cada folha que cai.


Olegário Mariano
in 'Poemas de amor e de saudade'
1.932.