sexta-feira, 28 de setembro de 2012

XXV



Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre a tua alma nas tuas mãos
E abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!

Cecília Meireles

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

ROSA PLENA



Rosa plena. Em glória
de cor
de forma
de febre
de garbo.
Em auréola sobre si mesma
- estática.
Em arroubo diante da luz
- dinâmica.
Enrodilhada em aconchego de concha
buscando o núcleo.
Fugindo-lhe ao cerco
- asas aflantes flamejantes.

Rosa plena.
Turíbulo. Ostensório.
Convite à valsa dos ventos.
Tributo ao círculo - perfeição
de chegar e partir.
Cada pétala é um sonho de retorno.
E as pétalas se avolumam compactas
e esmaecidas logo se despejam
ao longo e ao largo
- no fascínio
do pretérito pelo devir.
Sangue em oblata
no altar maior.
Amor e morte
pela revelação.
Rosa plena.
Poesia
que se fez Carne

Henriqueta Lisboa
in: A Pousada do Ser

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

QUANDO VIER A PRIMAVERA



Quando vier a Primavera, 
Se eu já estiver morto, 
As flores florirão da mesma maneira 
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. 
A realidade não precisa de mim. 

Sinto uma alegria enorme 
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma 

Se soubesse que amanhã morria 
E a Primavera era depois de amanhã, 
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. 
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? 
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; 
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. 
Por isso, se morrer agora, morro contente, 
Porque tudo é real e tudo está certo. 

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. 
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. 
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. 
O que for, quando for, é que será o que é. 

Alberto Caeiro
in Poemas Inconjuntos

SOTÃO



Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas. Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco. Mas o mortal
lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.

Fiama Hasse Pais Brandão
in Cenas Vivas

terça-feira, 25 de setembro de 2012

FRONTEIRA




Há o silêncio das estradas
e o silêncio das estrelas
e um canto de ave, tão branco,
tão branco, que se diria
também ser puro silêncio.
Não vem mensagem do vento,
nem ressonâncias longínquas
de passos passando em vão.
Há um porto de águas paradas
e um barco tão solitário,
que se esqueceu de existir.
Há uma lembrança do mundo
mas tão distante e suspensa...

Há uma saudade da vida
porém tão perdida e vaga,
e há a espera, a infinita espera,
a espera quase presença
da mão de puro mistério
que tomará minha mão
e me levará sonhando
para além deste silêncio,
para além desta aflição.


Tasso da Silveira
In Regresso à Origem

BASTA UMA FLOR



Basta uma flor,
basta uma asa
para saber que a primavera
entrou em nossa casa.

Albano Martins

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

POEMA



Se queres o vôo desliga-te de tudo,
De tudo que é excrescência,
Desfaz o véu que te embacia a face,
Descalça os pés e sente a pura terra.
Desfaz-te da palavra que já vem mentida,
Do teu instinto de defesa
E dá a mão à nuvem que caminha por ti.
Se queres encontrar o teu canto
Deixa-te guiar pelas coisas ressoantes,
Se queres encontrar o que perdeste,
Se queres descobrir o que consola
E por que clamam os teus sonos tristes
Encolhe-te no silêncio.
Tudo a que aspiras são cadeias
Que te prendem ao pensamento consternado
Que o tempo reduz superado
Antes do primeiro desejo sepultado.

Adalgisa Nery
In Erosão 

MULHER




Na face, a geografia da angústia,
Dos pânicos e das medrosas alegrias.
Cada ruga é um presságio.
E auréola da aflição constante
O esplendor dos cabelos brancos.

Uma só raiz para frutos diversos,
Uma só vida para destinos tão complexos,
Um só pranto para dores tão diversas.

O útero que gera o herói, o sábio, o poeta,
O santo, o miserável e o assassino.
Uma só raiz para frutos tão diversos!

O dom da paz em cada gesto
Cai como noites quietas
Sobre a alma em rancor,
Amor acima do amor.

Adalgisa Nery
In Erosão 

domingo, 23 de setembro de 2012

DAS UTOPIAS



Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Mário Quintana,
in Espelho Mágico 

sábado, 22 de setembro de 2012

PRIMAVERA



Despertam docemente as brisas.
Sopram serenas, noite e dia,
por toda a parte a sussurrar.
Aroma tenro, nova melodia.
Agora, pobre coração, reanima-te:
Agora tudo, tudo mudará.

Faz-se o mundo mais belo cada dia.
Se o momento presente é tão feliz
o amanhã que surpresas não trará!
Floresce ao longe o vale mais sombrio.
Agora, pobre coração, esquece a mágoa
Agora, tudo, tudo mudará.

Ludwig Uhland
 Trad.: Henriqueta Lisboa) 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

LYGIA FAGUNDES TELLES



"...a beleza não está nem na luz da manhã
nem na sombra da noite, está no crepúsculo,
nesse meio tom, nessa incerteza."

Lygia Fagundes Telles

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

AMIGO



Amigo é o vinho mais tinto
o vinho mais branco
é água de afago
o rio mais manso
amigo é o caminho
mais leve
o lugar mais seguro
é clareira no tempo
é fogueira de mel.

Roseana Murray 
‘In Fruta no Ponto’ 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

JOSÉ SARAMAGO



" Costuma-se dizer,
dêmos tempo ao tempo,
mas aquilo que sempre
nos esquecemos de perguntar
é se haverá tempo para dar"

José Saramago
in "O Homem Duplicado"

terça-feira, 18 de setembro de 2012

CITAÇÃO



"O tempo não é tão precioso, porque é uma ilusão.
O que você define como precioso, não é o tempo, 
mas é algo que vai além disso:
O AGORA.
Isso é realmente precioso.
Quanto mais você está focado no tempo - passado 
e futuro - mais você perde o agora."

Eckhart Tolle

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

OS DEGRAUS DA VIDA



É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos, nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.
Correm-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira,
in Antologia Poética

PALAVRAS



Aluviões de palavras
corroem as cordilheiras.
Densas nuvens de palavras
limitam os horizontes.
Os batalhões de palavras
concentram as agressões.
Há loucura de palavras
a brotar por entre as pedras
de inumeráveis caminhos.

Ao passarem as palavras,
brilhará, límpido e eterno,
o Verbo esquecido.

Helena Kolody
In: Sinfonia da vida 

domingo, 16 de setembro de 2012

PÁSSARO AZUL



Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?

Charles Bukowsky

sábado, 15 de setembro de 2012

ALBANO MARTINS


...
Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.
Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas mortas de sono.
Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto dum novo dia.



Albano Martins,
in SECURA VERDE E OUTROS POEMAS

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

SAUDADE



Saudade! és a ressonância
De uma cantiga sentida,
Que, embalando a nossa infância,
Nos segue por toda a vida!

Da Costa e Silva,
in Poesias Completas

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

CAIO FERNANDO ABREU



"Não, não ofereço perigo algum: 
sou quieta como folha de outono esquecida 
entre as páginas de um livro, sou definida e
clara como o jarro com a bacia de ágata no
canto do quarto -se tomada com cuidado,
verto água límpida sobre as mãos para que se
possa refrescar o rosto mas, se tocada por
dedos bruscos num segundo me estilhaço
em cacos, me esfarelo em poeira dourada."

Caio Fernando Abreu,
in Morangos Mofados

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

VANDALISMO



Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


Augusto dos Anjos

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PASTORAL




Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.

Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão,
in Poesias Completas

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A MIRAGEM NO CAMINHO



Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

LOUCURA LÚCIDA




Pairo, de súbito,
noutra dimensão

Alucina-me a poesia,
loucura lúcida.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

VELHA INTERROGAÇÃO



Passa a vida? Continua…
Porque o tempo é que flutua,
como um rio de veludo,
sobre todos, sobre tudo...

À sua imagem sonhamos:
de onde vimos? aonde vamos?

E o destino indiferente
vai impelindo a torrente...

Passa a vida? Continua...
Com o tempo quem passa é a gente.
Mas, vida, se nós passamos,

de onde vimos? aonde vamos?


Da Costa e Silva
in: Poesia Completa






PRECE



dá-me a lucidez das
correntezas para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim

dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda
que breve

dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias que se esparramam um
horizonte mesmo
que se transmude em ilusão

dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
imensificam uma sanidade ainda
que estofada de
delírios

Adair Carvalhais Júnior