segunda-feira, 29 de junho de 2015

CERCO


Arte Giovani Strino 


O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes,rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
corpo, sim,ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.

Eugénio de Andrade
In "Rente ao Dizer"


quinta-feira, 25 de junho de 2015

PAIRA À TONA DE ÁGUA




Paira à tona de água 
Uma vibração, 
Há uma vaga mágoa 
No meu coração.

Não é porque a brisa 
Ou o que quer que seja 
Faça esta indecisa 
Vibração que adeja, 

Nem é porque eu sinta 
Uma dor qualquer. 
Minha alma é indistinta, 
Não sabe o que quer. 

É uma dor serena, 
Sofre porque vê. 
Tenho tanta pena! 
Soubesse eu de quê!...”

*Fernando Pessoa*
Em “Poesias”, Lisboa, Ed. Ática, 1942.


segunda-feira, 22 de junho de 2015

POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO



                  
 
A noite trocou-me os sonhos e as mãos  
dispersou-me os amigos  
tenho o coração confundido e a rua é estreita  
estreita em cada passo  
as casas engolem-nos  
sumimo-nos 
estou num quarto só num quarto só  
com os sonhos trocados  
com toda a vida às avessas a arder num quarto só  
Sou um funcionário apagado  
um funcionário triste  
a minha alma não acompanha a minha mão  
Débito e Crédito Débito e Crédito  
a minha alma não dança com os números  
tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço 
Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino  
irmão beijo namorada  
mãe estrela música 
São as palavras cruzadas do meu sonho  
palavras soterradas na prisão da minha vida  
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só. 
     
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 

domingo, 21 de junho de 2015

SENTIMENTO DA NOITE




Com o fundo poder azul da noite,
que me clareia o coração,
por uma súbita nesga entre as nuvens
reluz o mundo das estrelas e da lua.


Em seu jazigo, lampeja minha alma
com redivivo ardor;
ao pálido perfume das esferas,
a noite dedilha a harpa.


A essa convocação, míngua a penúria
e a preocupação foge.
Mesmo que eu amanhã já não esteja
aqui – aqui estou hoje!

Hermann Hesse
In: Andares

sexta-feira, 19 de junho de 2015

SONETO DA PORTA




Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.

Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.

Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,

sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.



Lêdo Ivo
in "Plenilúnio".

terça-feira, 16 de junho de 2015

LÁ FORA, O FRIO PREPARA A SUA GEADA...




Lá fora, o frio prepara a sua geada,
a noite clara, os pássaros dormindo.
A lenha rubra em fogo se esvaindo,
um poema tecendo a sua meada.
Algo se foi. A casa está vazia.
As tábuas gastas de tantos andares
têm a memória plena de cantares
a desfiar o tempo que se adia.
Tudo é silêncio. Salvo a melodia
do fogo afugentando com urgência
a nota surda da melancolia.
Tudo é fugaz. Apenas permanece
a brasa em sua adiada despedida –
e o poema, agora cálido, se tece.
 
Renato Tapado
In Palavras na Penumbra

segunda-feira, 15 de junho de 2015

UM DIA JUNTEI TODAS AS PALAVRAS



Um dia juntei todas as palavras
que já aprendera e
busquei para elas novos sentidos,
novas maneiras de soar e de voar
até ao coração dos homens.
Censuraram-me por tê-lo feito
e houve até quem dissesse:
“As palavras são o que são
e procurar para elas novos significados
é pura perda de tempo e ofensa dos deuses.”
Eu não lhes dei ouvidos
e continuei a escrever, aprendendo
O sabor de casar a palavra ”água”
com a palavra ”vento” e a palavra
“corpo” com a palavra “terra”
e a palavra “homem” com “sonho”
e a palavra “natureza” com “vida”.
Foi, assim um pouco sem o querer,
um pouco sem o esperar, que usei
pela primeira vez a palavra”poesia”,
que viaja comigo, companheira eterna,
para todos os lugares onde vou,
desde a memória do homem
até aos últimos esconderijos da noite,
até ao fundo da claridade dos dias(…)

José Jorge Letria
In “No Voo de uma palavra”


quarta-feira, 10 de junho de 2015

SONETO 73



Soneto (73)


Esta estação do ano podes vê-la 
em mim: folhas caindo ou já caídas; 
ramos que o frémito do frio gela; 
árvore em ruína, aves despedidas. 
E podes ver em mim, crepuscular, 
o dia que se extingue sobre o poente, 
com a noite sem astros a anunciar 
o repouso da morte, gradualmente. 
Ou podes ver o lume extraordinário, 
morrendo do que vive: a claridade, 
deitado sobre o leito mortuário 
que é a cinza da sua mocidade. 
      Eis o que torna o amor mais forte: 
      amar quem está tão próximo da morte. 


William Shakespeare, in "Sonetos" 
Tradução de Carlos de Oliveira 


segunda-feira, 8 de junho de 2015

CREPÚSCULO DE OUTONO



O crepúsculo cai, manso como uma benção. 
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito… 
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam 
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços. 
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar 
O terror augural de encantos e feitiços. 
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve 
Todo o verde que a vista espairecendo vejas, 
Mais negros sobre a alvura unânime da neve, 
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio 
Do rio, e isso parece a voz da solidão. 
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo… 
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha 
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, 
Flocos, que a luz do poente extática semelha 
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia. 
E tamanha esperança e uma tão grande paz 
Avultam do clarão que cinge a serrania, 
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


Manuel Bandeira 
De A cinza das Horas 

domingo, 7 de junho de 2015

ANTES DE ANTECIPARMOS O FUTURO




Antes de anteciparmos o futuro acrescentemos
à voz da terra o sobressalto das fontes
refugiando a sede.
Nenhuma nascente escapa à exigência,
tão vulnerável, da secura do barro
que nos separa das nuvens.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012










terça-feira, 2 de junho de 2015

CANÇÃO DO RECOMEÇO


Arte de Luis Romero

A casa aonde voltei
depois de muitos anos,
bóia como uma ilha de aguapés na noite,
presa por uma raiz doce e dolorosa
que me define.

Na madrugada caminho pelos quartos
como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem como quando
eram meninos,
e suas respirações, como sentimentos,
fundem-se neste bojo.

Este é o meu lugar
aonde voltei depois de tanto tempo,
como quem, misturando peças
dos enigmas mais arcaicos,
montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça.

Lya Luft

LOGRO



Como se tivessem aves afogadas no olhar, 
os meninos desenham com cinza 
as flores do jardim. 
Cresceram. Os berlindes perderam a cor. 
As fadas que lhes embalavam o sono 
desapareceram dos livros. 
Os navios dos piratas seguiram outros rumos. 
Um fuso imaginário alterou certeiro 
o pulsar dos segundos no lastro dos dias.


Graça Pires
De Caderno de significados, 2013