sexta-feira, 30 de maio de 2014

GOSTARIAS DE DECIDIR...




Gostarias de decidir por ti.
O sol nunca se atrasa.
A noite chega sempre a horas certas.
Tu adiantaste o relógio com receio de adormecer mais
cedo ou de não chegar a tempo à festa do dia seguinte.
Não te perguntaram se querias vir e alguém marcou, sem
teu consentimento, a hora da chegada.
 Gostarias de ser tu a marcar a partida.
Precisas de inventar um relógio onde o tempo não
decline e um leito onde o sol não adormeça.
Um firmamento onde tu e ele sejam as únicas estrelas.


Albano Martins,
de Escrito a Vermelho


quarta-feira, 28 de maio de 2014

RETORNO




Um dia voltarei a ser terra
e de meu seio brotarão
flores agrestes.

Um dia voltarei a ser húmus
e nutrirei velhas árvores
de rubros frutos.

Um dia voltarei a ser pó
e água
e seiva.
E viverei em rochas,
raízes vegetais,
vagas do oceano.

Um dia eu serei
o que já fui.

Renato Castelo Branco 
in A Janela do Céu
(1914 - 1995)

terça-feira, 27 de maio de 2014

O EFÊMERO



Da árvore da vida cai
Folha em folha sobre mim.
Oh! vertiginoso mundo colorido,
Como você cansa e entedia.
Como é forte essa embriaguez!
O que hoje ainda brilha
Breve desaparecerá.
Sobre o meu sepulcro marrom
Breve o vento rangerá.
Sobre a criancinha a mãe reclina
Seus olhos eu gostaria de rever,
Seu olhar é minha estrela,
Tudo mais pode ir, desaparecer,
Tudo morre, tudo gosta de morrer.
Só a mãe eterna permanece,
Donde viemos,
Seu dedo leve escreve
Nosso nome ao vento.

- Hermann Hesse
In Caminhada


segunda-feira, 26 de maio de 2014

FRAGMENTO VIDA



Postais,
envelopes,
letras,
capítulo
de história
vivida,

amigos
à distância...
A vida
se compõe
de pedacinhos

de saudade...

Delores Pires
In A Estrela e a Busca



VIAGEM


Estive longe,
bem longe...
Tornei-me 
pequeno...
Empinei 
papagaio...
Apanhei.
(Vara 
de marmelo
dói.Puxão
de orelha
também!...)
Deixei pegadas
miúdas
no chão frio
e branco
de geada...
Senti 
a carícia
da água
cristalina
do rio 
amigo...
Persegui
borboletas
amarelas...
Colhi 
a rosa
perfumada
do jardim...
Ouvi 
o bimbalhar
do sino...
- Dona Saudade
visitou-me...

Delores Pires
In A Estrela e a Busca

domingo, 25 de maio de 2014

ESTA É A GRAÇA



Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?
Talvez a noite com nova estrela,
a pátina de ouro do tempo,
alguma cousa de precário 
assim como para o soldado a paz?

Com grave mistério de reposteiros
um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
do bulício das samambaias no horto.

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.

O mesmo silencio da madrugada
prenuncia, sem duvida, um evento
que já não é o grito da aurora
ao macular de sangue a túnica.

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas. 


Henriqueta Lisboa
In:'A Flor da Morte' (1945-1949)


sábado, 24 de maio de 2014

QUANDO TE DÓI A ALMA



Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,
 
quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,
 
quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,
 
nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor. "
 
Fernanda de Castro
in, Poesia II

sexta-feira, 23 de maio de 2014

CEDO OU TARDE



Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.

Albano Martins
Escrito a vermelho

terça-feira, 20 de maio de 2014

A PANTERA


 
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos descresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando a fecha da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
 
- Rainer Maria Rilke
(tradução de Augusto de Campos)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

FUGA



Vento que passas, leva-me contigo
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu possa dormir
Como no limbo dormem as crianças.


Miguel Torga
In: Antologia Poética

sexta-feira, 16 de maio de 2014

EM LOUVOR AO FOGO




Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta
doçura da tarde.


Eugenio de Andrade
in Obscuro Domínio


FOGUEIRAS DE OUTONO



Veja nos outros jardins
e através do vale todo
a fumaça, que é uma trilha
dessas fogueiras de outono!

Se o ameno verão findou
e findaram as suas flores,
já ardem os rubros fogos,
e fumos cinzentos sobem.

Cantem então algo radioso,
a canção das estações:
flores em meio a verões,
fogueiras durante outonos!

Robert Louis Stevenson

terça-feira, 13 de maio de 2014

MANHÃ DE CHUVA



As pessoas 
vão caminhando...
Ares tristes...
Rostos
molhados...

O carro passa
e respinga
o pedestre.

O dia 
está sombrio
e sério...
com a solenidade
dos dias
de chuva!

Delores Pires
In A Estrela e a Busca

NÃO SÃO APENAS OS RELÓGIOS



Também se pode regressar
sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes é
o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.

Albano Martins
em Escrito a Vermelho,


sábado, 10 de maio de 2014

SÓ NA MEMÓRIA DO TEU ROSTO


(minha mãe Olivia Diva, in memorian)


Só na memória do teu rosto, mãe
posso encontrar agora as paredes
da casa onde nasci.
Como se fosse possível voltar
àquele tempo em que a felicidade
residia nas tuas mãos
entretidas a encaracolar os meus cabelos.


Graça Pires

quarta-feira, 7 de maio de 2014

EM SEDA



Por esta luz que me alumia
e me inventa em seda a estrada

entre a arte, alívio da memória,
e o mais trêmulo aceno do nada

- se com o mundo me acertei/me desavim,
já nem sei - 

sou o que perdidamente
tomou rumo de mim.

(Fernando Campanella, 2010)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

ÀS VEZES



Às vezes, quando um pássaro chama
ou entre os ramos algum vento sopra
ou nalgum pátio longe ladra um cão,
por longo tempo eu escuto e me calo.

Minha alma voa para o passado,
para onde, há mil esquecidos anos,
o pássaro e o vento que soprava
mais pareciam meus irmãos e eu.

Minha alma faz-se uma árvore,
um animal, um tecido de nuvens...
Transfigurada e estranha, volta a mim
e me interroga. Que resposta lhe darei?

Hermann Hesse
in: Andares
(Tradução de Geir Campos)


FRUTESCÊNCIA




Em solidão amadurece
a fruta arrebatada ao galho
antes que o sol amanhecesse.

Antes que os ventos a embalassem
ao murmurinho do arvoredo.
Antes que a lua a visitasse
de seus mundos altos e quedos.
Antes que as chuvas lhe tocassem
a tênue cútis a desejo.
Antes que o pássaro libasse
do palpitar de sua seiva
o sumo, no primeiro enlace.

Na solidão se experimenta
a fruta de ácido premida.

Mas ao longo de sua essência
já sem raiz e cerne e caule
perdura, por milagre, a senha.

Então na sombra ela adivinha
o sol que a transfigura em sol
a suaves pinceladas lentas.
E ouve o segredo desses bosques
em que se calaram os ventos.
E sonha invisíveis orvalhos
junto à epiderme calcinada.
E concebe a imagem da lua
dentro de sua própria alvura.
E aceita o pássaro sem pouso
que a ensina, doce, a ser mais doce.


Henriqueta Lisboa
in Além da Imagem

quinta-feira, 1 de maio de 2014

NÓS SOMOS FEITOS DE TEMPO



"Nós somos feitos de tempo; somos amassados da argila 
do tempo; somos feitos de idades, de estações, de horas,
de dias, somos feitos de cronometrias, isto é,
de medições de tempo, visíveis e invisíveis.
De facto, tudo o que é humano é feito de tempo; somos 
um reservatório de tempo; lençóis de tempo que se vão
acumulando. Para dizer uma palavra - somos duração...

José Tolentino Mendonça,
in Nenhum Caminho será Longo


NEM SEMPRE SOU IGUAL AO QUE DIGO E ESCREVO...



Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...

Alberto Caeiro
(in O Guardador de Rebanhos)