segunda-feira, 31 de março de 2014

TANTO



Para Lygia F. Telles

Nada entendo de signos: 
se digo flor é flor, se digo àgua 
é água. ( Mas pode ser disfarce de um segredo.) 
Se não podem sentir, não torçam 
a arvore-de-coral do meu silêncio: 
deixem que eu represente meu papel. 

Não me queiram prender como a um inseto 
no alfinete da interpretação: 
se não me podem amar, me esqueçam. 
Sou uma mulher sozinha num palco, 
e já me pesa demais todo esse ofício. 
Basta que a torturada vida das palavras 
deite seu fogo ou mel na folha quieta, 
num texto qualquer com o meu nome embaixo.

LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984



domingo, 30 de março de 2014

LEMBRETES




É importante acordar
a tempo

é importante penetrar
o tempo

é importante vigiar
o desabrochar do destino.


Orides Fontela ,
in Trevo

ESTAÇÕES



" Estão em mim as estações
como se fossem uma só
as quatro sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da aurora até o ocaso
a chuva o verde o sol o vento
sem me desvelar estão em mim
são a missão recém-nascida
e são os mortos do meu mundo
minhas ocultas estações
me fazem feliz / sofrem por mim
cada uma delas tem um céu
e cada céu é um espelho
que fala de todos e de mim
as estações se congregam
se reconhecem e se abraçam
as quatro sempre estão em mim
sou seu fervor suas folhas mortas
seu granizo suas colheitas
sua porta aberta seus cadeados
sua insolação seus aguaceiros
como um destino estão em mim
as estações se embaralham
para se mesclar com minha vida
para se juntar com minha morte
e então fugir de mim ."

Mario Benedetti
in , " Correio do tempo "

sexta-feira, 28 de março de 2014

HÁ OÁSIS




nos desertos
procuram-se oásis

ficam por lá as marcas
de viajantes…
… e de camelos

há vidas desertas
pés escaldados sonhando oásis

há vidas,
oásis em alguns desertos

… há viajantes


Joaquim do Carmo
in "Amanhecer pelo fim da tarde"

SOLEMNIA VERBA




Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.


Antero de Quental,
in "Sonetos"


quinta-feira, 27 de março de 2014

A MANHÃ É DE TODOS.


A Manhã é de todos-
A Noite - a alguns dada -
Para os poucos do império -
A luz da Madrugada.



Emily Dickinson
(1830-1886)
In "Cem Poemas"
Trad. de Ana Luísa Amaral.


domingo, 9 de março de 2014

PEDIDO DE DEMISSÃO



Por não saber fazer o bife perfeito,
por não pregar o botão na camisa,
por não manter o sapato engraxado,
por ser a companheira insuficiente,
impertinente, indecisa,
por não saber me comportar quando ao seu lado

eu me retiro.
E se confiro o saldo apurado,
só me entristeço:
por ver o acorde no violão estaganado,
o poema de amor interminado,
o romantismo que hoje já não se admite.
E no lugar que agora eu não mereço,
fica uma vaga a quem quer que se habilite.
Não fica mágoa,
não deixo sombras,
nem endereço.

Flora Figueiredo
in Florescência













sábado, 8 de março de 2014

A MULHER



Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!


Florbela Espanca,
in “Trocando olhares”











SER MULHER



Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

- Gilka Machado,
in “Cristais Partidos” 1915.


 

sexta-feira, 7 de março de 2014

BALADA DE SEMPRE



Espero a tua vinda,
a tua vinda,
em dia de lua cheia.
Debruço-me sobre a noite
inventando crescentes e luares.
Espero o momento da chegada
com o cansaço e o ardor de todas as chegadas.
Rasgarás nuvens, estradas,
abrindo clareiras
nas vielas de ciladas.
Saltarás por cima de mares,
de planícies e relevos
— ânsia alada
no meu desejo imaginada.

Mas…
enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí, além,
lambe-me os braços hirtos, braços verdes,
algas de sonho,
…e desenha ironias na areia molhada.



Fernando Namora,
de As Frias Madrugadas,
Editora Arcádia, Lisboa





quinta-feira, 6 de março de 2014

PLENITUDE



Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto. fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.

A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas…
Arde-me na garganta… E nas artérias sinto
O bálsamo aromado e quente das resinas
Que vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estua
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas,
E eu absorvo-o nos sons, na glória da luz crua
E ouço-o ardente bater dentro em minhas entranhas

Tenho êxtase de santo… Ânsias para a virtude…
Canta em minh´alma absorta um mundo de harmonias.
Vêm-me audácias de heroi… Sonho o que jamais pude
- Belo como Davi, forte como Golias…

E neste curto instante em que todo me exalto
De tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo,
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto
Nem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida…
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida!


Manuel Bandeira


quarta-feira, 5 de março de 2014

terça-feira, 4 de março de 2014

MARÇO VOLTOU



Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar

de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos

com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.

e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.


Eugénio de Andrade,
in Branco no branco (1984)

















domingo, 2 de março de 2014

CERTA FERIDA




Como a árvore a que cortam um galho
e permanece (aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.


Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.


Uma flor brotava errante
na parte decepada.


Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.


Affonso Romano de Sant’Anna,
in Vestígios


REPASSANDO


Interessado no passado, estou.
O passado, impaciente, me acena
me habita, me ordena.

O presente é uma vaga aliança
da aparência com a esperança.

O futuro pode esperar:
ele é uma fruta
que ao invés de ser colhida, me habita
e me impele a madurar.



Affonso Romano de Sant’Anna
In “POESIA REUNIDA”


sábado, 1 de março de 2014

UM CAMINHO DE PALAVRAS




Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos
 nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque
 há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho
 e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também:

 então invento os meus passos e o meu próprio caminho. 
E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e
 as pedras, caminho um caminho de palavras.

Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.



António Ramos Rosa,
in "Sobre o Rosto da Terra"