segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ESTRADA


Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho
manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Manuel Bandeira,
in "Estrela da Vida Inteira - O ritmo dissoluto"

domingo, 27 de janeiro de 2013

PASSAGEM DAS HORAS


"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero..."

Fernando Pessoa

sábado, 26 de janeiro de 2013

RUMI



"Em cada coração há uma
janela para outros corações.
Eles não estão separados,
como dois corpos.
Mas, assim como duas lâmpadas
que não estão juntas,
Sua luz se une num só feixe."

Jalaluddin Rumi

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

ALLEGRO



Nuvens esgarçam-se; do céu em brasa
errante luz bruxuleia sobre vales ofuscados.
Pando com o vento quente procela
fujo a passo incansável
Atravessando uma vida nublada.
Ah, se por um instante
ao menos, entre mim e a luz eterna
uma propícia borrasca soprasse o cinzento nevoeiro!
Estrangeira é a terra que me cerca:
leva-me longe, arrancado da pátria,
de um lado para outro o poderoso vagalhão do destino.
Vamos, vento: corre com essas nuvens,
rasga esses véus
para que a luz me possa cair sobre os incertos atalhos!

Hermann Hesse
in Andares 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

MIA COUTO



“[…]Falamos em ler e pensamos apenas nos livros.
Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. 
Nós lemos emoção nos rostos, 
lemos os sinais climáticos nas nuvens, 
lemos o chão, lemos o Mundo, 
lemos a Vida.
Tudo pode ser página. 
Depende apenas da intenção de descoberta 
do nosso olhar.”

— Mia Couto

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

GABRIEL GARCIA MARQUEZ


"...se deixou levar por sua convicção de que
os seres humanos não nascem para sempre no dia
em que as mães os dão à luz, e sim que a
vida os obriga outra vez e muitas vezes a
se parirem a si mesmos."

Gabriel García Márquez
In: O amor nos tempos do cólera

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

HÁ DIAS



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

EUGÉNIO DE ANDRADE,
in Lugares do Lume 
 
 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

VIVER É...



Viver é uma peripécia. Um dever, um afazer, um prazer,
 um susto, uma cambalhota. Entre o ânimo e o desânimo,
 um entusiasmo ora doce, ora dinâmico e agressivo.

Viver não é cumprir nenhum destino, não é ser empurrado
 ou rasteirado pela sorte. Ou pelo azar. Ou por Deus,
 que também tem a sua vida. Viver é ter fome. Fome de 
tudo. De aventura e de amor, de sucesso e de comemoração
 de cada um dos dias que se podem partilhar com os outros.

 Viver é não estar quieto, nem conformado, nem ficar 
ansiosamente à espera.
Viver é romper, rasgar, repetir com criatividade. 
A vida não é fácil, nem justa, e não dá para a comparar
a nossa com a de ninguém. De um dia para o outro ela muda,
 muda-nos, faz-nos ver e sentir o que não víamos nem
 sentíamos antes e, possivelmente, o que não veremos 
nem sentiremos mais tarde.

Viver é observar, fixar, transformar. Experimentar mudanças.
 E ensinar, acompanhar, aprendendo sempre.
 A vida é uma sala de aula onde todos somos professores, 
onde todos somos alunos. 

Viver é sempre uma ocasião especial. Uma dádiva de nós 
para nós mesmos. Os milagres que nos acontecem têm sempre
 uma impressão digital. A vida é um espaço e um tempo
 maravilhosos mas não se contenta com a contemplação.
 Ela exige reflexão. E exige soluções.

A vida é exigente porque é generosa. 
É dura porque é terna. 
É amarga porque é doce. 
É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós 
encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. 
A vida é a mais séria das coisas divertidas.

Joaquim Pessoa, 
in 'Ano Comum'

domingo, 13 de janeiro de 2013

ÁRVORE DE INVERNO



Abandono de aves e de folhas
Ninguém já descansa à tua sombra.
só te resta a nua arquitetura
de ramos como braços de náufragos

Assim me enternecem
o teu frio, ausência de cor,
a tua penosa hibernação

Resignados, mas confiantes
ambos aguardamos
a ressurreição na primavera.

FERNANDO COUTO

sábado, 12 de janeiro de 2013

LABIRINTO



Não haverá nunca uma porta. Estás dentro
E o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor de teu caminho
Que teimosamente se bifurca em outro,
Que teimosamente se bifurca em outro,
Tenha fim. É de ferro teu destino
Como teu juiz. Não aguardes a investida
Do touro que é um homem e cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe. Nada esperes. Nem sequer
A fera, no negro entardecer.


Jorge Luis Borges
In Elogio da sombra (1969)
Tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

ÍMPAR



Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?

David Mourão-Ferreira


quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A ESTAÇÃO DAS LÁGRIMAS*



Quando a Estação das Lágrimas chegar;

Quando, diante do sal sobre seu rosto pairar
e a exata hora do terrível dia vier arder;

Quando, atrás ou adiante seu coração doído,
vir o cortinado de trevas a esconder a luz
dos seus olhos castanhos, verdes ou azuis;

Quando, sob o par de óculos de sol de Paris,
ou de esquinas do mais ermo pueril lugarejo,
não for capaz de esconder seu Luto e Pavor;

Quando tal Tempo – sempre cruel, fatal
e inesperado, tornar seu rosto disforme,
toldando-o de dores infames e sem cor;

Quando seu mais caro e próximo parente
ou amigo, aquele do peito, na Primavera
da Juventude ou Inverno da Velhice se for;

Quando a Estação das Lágrimas invadir
seus olhos vivos, tornando-se senhora voraz
do seu infante ou vetusto completo Ser:

Não adianta conselheiros sair a procurar.
Não perca seu tanto ou escasso tempo
a lhes escutar; a maior atenção lhes dar...

Não dê, alma e ouvidos, às suas tantas e tontas
palavras. Não àqueles esmerados fanáticos
(e não são poucos), no tão solícito consolar!

Antes, busque aqueles (e são poucos) que,
com discreta, sóbria e solene humildade,
lhe sussurram a clara Harmonia do Silêncio.

Aqueles que, com simples e suficientes frases,
sem nada querer, ou tanto se fazer escutar,
antes do Abraço Silente dizem carinhosamente:
“Não sei o quê falar!”

Estes são aqueles capazes de lhe ofertar alento;
de dar-lhe o primo, mais caro; necessário Silêncio,
enquanto, e sempre, que a Estação das Lágrimas
cobrir seu rosto com a ausência do calor franco.

Estes são aqueles que hão de ajudá-lo a curar
suas feridas sem Sal – até que seus olhos tornem
a suportar o Sol – que para nem todos se levanta;
para aqueles que nem sempre os sinos dobram!

Estes são aqueles que, na Estação das Lágrimas,
saberão a exata medida do Abraço à Dor Alheia
sem jamais esperar ou aventar qualquer Gratidão.

Então, enquanto o rio recebe o quê lhe cabe
da Estação das Lágrimas, em conduta a oceanos
vários, lembre-se que “Não sei o quê falar!”
diz Tudo que precisa ouvir durante o Abraço:

Tudo e Mais que irá aliviar seu cansaço; o peso
da sua Dor e Desespero – que, por anos, saberão
a fel e Amargo Desterro n’A Terra dos Homens.

Nada é mais necessário e sublime que isso; nada
melhor que, perdido no Tempo Efêmero da Vida,
lhe soará como acalanto capaz de a todos conceder
a Alforria da Terra!

Foi o quê aprendi da Estação das Lágrimas:
Tudo Preciso: na hora fatal da Lavoura Arcaica;
quando à Terra devolvi meus Pais e Filho!

Além de, à distância, ‘dizer’ adeus à Senhora:
Aquela – última guardiã, cúmplice e escrivã
das minhas Memórias de Infância, Juventude
e Velhice: Madrinha e Operária da Luz...

*Jairo De Britto - São Paulo, Capital.
(25 de Outubro - 15 de Novembro de 2012)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

II



A flor abriu nos caminhos do abismo.
 
Mãos desfeitas colheram-na
nos caminhos do abismo,
e as pétalas inocentes não murcharam.
 
A flor azul abriu no deserto silente.
 
Mãos crispadas colheram-na
no deserto silente
e as pétalas virginais não se crestaram.
 
A flor azul abriu no píncaro alto e puro.
 
Mãos sagradas colheram-na
no píncaro alto e puro,
e as pétalas miraculosas não tombaram.
 
E nos caminhos tristes,
no deserto,
no píncaro,
 
os Poetas cantaram. . . 
 
 
Tasso da Silveira
In: Puro Canto

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

RETRATO DE MULHER TRISTE



Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Cecília Meireles,
in 'Poemas'

domingo, 6 de janeiro de 2013

A LÁGRIMA QUE SE ACUMULA...



A lágrima que se acumula e tolda momentaneamente a vida
é apenas uma pétala dessa grande árvore submersa
onde estão tempos,figuras,palavras ditas e ouvidas,
gestos,esforços,renúncias,insônias,misericórdias.

O suspiro é uma brisa paciente que deixa cair tudo isso
ai! que deixa cair tudo isso em grandes vales de silêncio.

Outras lágrimas se sucedem, nessas tristes, intermináveis
[primaveras].

E assim vamos, até a morte, sem esquecimento possível,
e só valemos pela posição que ocupamos nesse fantástico espetáculo.

Cecília Meireles
In Poesia Completa