quinta-feira, 29 de novembro de 2012

POSSIBILIDADES



Prefiro cinema. 
Prefiro os gatos. 
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta. 
Prefiro Dickens a Dostoievski. 
Prefiro-me gostando de homens 
em vez de estar amando a humanidade. 
Prefiro ter uma agulha preparada com linha. 
Prefiro a cor verde. 
Prefiro não afirmar 
que a razão é culpada de tudo. 
Prefiro as excepções. 
Prefiro sair mais cedo. 
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa. 
Prefiro as velhas ilustrações listradas. 
Prefiro o ridículo de escrever poemas 
ao ridículo de não os escrever. 
No amor prefiro os aniversários não redondos 
para serem comemorados cada dia. 
Prefiro os moralistas, 
que não prometem nada. 
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais. 
Prefiro a terra à paisana. 
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores. 
Prefiro ter objecções. 
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem. 
Prefiro os contos de fadas de Grimm às manchetes de jornais. 
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas. 
Prefiro os cães com o rabo não cortado. 
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros. 
Prefiro as gavetas. 
Prefiro muitas coisas que aqui não disse, 
a outras tantas não mencionadas aqui. 
Prefiro os zeros à solta 
a tê-los numa fila junto ao algarismo. 
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas. 
Prefiro isolar. 
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando. 
Prefiro levar em consideração até a possibilidade 
do ser ter a sua razão.

WISLAWA SZYMBORSKA
Tradução: Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves ,
de Alguns gostam de poesia- Antologia

terça-feira, 27 de novembro de 2012

CONFIDENCIAL



Não me perguntes, porque nada sei
Da vida,
Nem do amor,
Nem de Deus,
Nem da morte.
Vivo,
Amo,
Acredito sem crer,
E morro, antecipadamente
Ressuscitando.
O resto são palavras
Que decorei
De tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
Aprende a adivinhar
O que de mim não possas entender.

Miguel Torga
In ‘Obra Completa’

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

NIRVANA



Paz das montanhas, meu alivio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silencio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.

Miguel Torga
In: Antologia Poética

sábado, 24 de novembro de 2012

INÂNIME AUSÊNCIA*



Eu sempre chego atrasado.
Não às reuniões com outros executivos;
não para dos médicos ouvir mais motivos:

Chego atrasado quando devia Presença
àqueles que na minha Vida
hoje são amarga e solene ausência!

*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"

MIA COUTO

...
Os lugares não se comparam. 
Como as pessoas,
cada um deles acontece num momento único, 
numa única e irrepetível vida.

Mia Couto, 
in Pensageiro Frequente

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

ENTRADA DA PRIMAVERA



O vento quente zune toda a noite,
pesadamente rufla a sua asa molhada.
Aves pernaltas titubeiam no ar.
Nada mais dorme:
toda a terra está acordada,
a primavera chama.

Fica quieto coração, fica quieto!
Mesmo que densa e íntima no sangue
agite-se a paixão
e caminhos antigos te seduzam:
de volta à juventude
teus caminhos jamais te levarão.

Hermann Hesse
In Andares
Tradução de Geir Campos  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

EM ALGUM LUGAR



EM ALGUM LUGAR

No deserto da vida eu erro e ardo
a gemer sob o peso do meu fardo,
mas em algum lugar quase esquecidos
sei de frescos jardins em sombra e em flor.
Em algum lugar, nos confins do sonho,
sei que um abrigo vela
onde a alma volta a ter pátria
e estão à espera o sono, a noite e as estrelas.

Hermann Hesse
In Andares
Tradução Geir Campos

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

VÃS CONFISSÕES*



Não quero ou pretendo mais nada.
Tive, na minha idade, o suficiente
de alegria, decepção, dor e perdas.

Só gostaria de mais árvores, flores 
e alvoradas.
E, se possível, um mundo menos 
inclemente.

*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"

REFLEXÃO



Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.

Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detem-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.

Elas, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento...

Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...

Gilka Machado
In ‘Estados da alma"

terça-feira, 20 de novembro de 2012

PEREGRINAÇÃO



Peregrino da Terra, espírito de lenda, 
Toma a sacola e o manto, arrima-te ao bordão, 
Vamos peregrinar os dois por esta senda, 
- Suave estrada de luz, por onde tantos vão… 

Sem ter nada que a terra as nossas almas prenda, 
Levando como um facho a luz da redenção, 
Iremos a cantar, armando a nossa tenda, 
Em cada uma Esperança, em cada uma Ilusão! 

E assim, ambos a sós, sombra despercebida, 
Iremos pelo mundo, iremos pela vida, 
Levando o mesmo Ideal, pisando a mesma estrada… 

E havermos de chegar bem cedo a essa país, 
Onde se canta sempre e sempre se é feliz, 
Sob a perpétua luz da eterna madrugada! 


 ALCEU WAMOSY ,
In Flâmulas

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

NUNCA MAIS



Passa um dia,
e outro a correr atrás dele
e outro e outro...
O tempo a todos impele,
tal o vento
levando, em doida correria,
revoadas de folhas outonais,
folhas de calendários sempre iguais,
uma a uma arrancadas,
perdidas nas estradas...

Nunca mais... Nunca mais...

Saúl Dias
in Essência

domingo, 18 de novembro de 2012

DE QUE SÃO FEITOS OS DIAS?


De que são feitos os
dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre magoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glorias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...


Cecília Meireles
In: Canções


terça-feira, 13 de novembro de 2012

MIA COUTO


...
"O que faz andar a estrada?
É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos,
para nos fazerem parentes do futuro."
...

Mia Couto
in "Terra sonâmbula"

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A FALA DE DEUS



Houve um tempo em que Deus falava hebraico.

Passou depois a falar latim
após um rápido estágio pelo grego.

Atualmente há quem afirme
que optou pelo inglês
embora em algumas tribos
xamãs se comuniquem com os seus
em incompreensíveis dialetos.

Isto apenas prova
que Deus é poliglota.
Se não 
por que inventaria a Torre de Babel?

Só não entendo por que alguns se apresentam
como seus tradutores e intérpretes
quando ele claramente fala
pela voz dos pássaros e das flores

ou quando pela boca das bactérias 
destrói (silencioso)
- nossa empáfia verbal.

Affonso Romano de Sant"Anna
In Sísifo desce a montanha

domingo, 11 de novembro de 2012

CANÇÃO DO AMOR



Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
elevá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Oh, doce canção.


Rainer Maria Rilke

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

INFÂNCIA



Levaram as grades da varanda
Por onde a casa se avistava.
As grades de prata.

Levaram a sombra dos limoeiros
Por onde rodavam arcos de música
E formigas ruivas.

Levaram a casa de telhado verde
Com suas grutas de conchas
E vidraças de flores foscas.

Levaram a dama e o seu velho piano
Que tocava, tocava, tocava
A pálida sonata.

Levaram as pálpebras dos antigos sonhos,
Deixaram somente a memória
E as lágrimas de agora.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

CAIO FERNANDO ABREU



"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas
ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim,
pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que
não existe, pelo muito que amei e não me amaram,
pelo que tentei ser correto e não foram comigo.
Meu coração sangra com uma dor que não consigo
comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro
todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de
gritar que esta dor é só minha, de pedir que me
deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não
entendermos nada disso. A única magia que existe
é a nossa incompreensão."

Caio Fernando Abreu,
in Ovelha Negra

CAIO FERNANDO ABREU



"Vai passar,tu sabes que vai passar.Talvez não amanhã,
mas dentro de uma semana, um mês ou dois,quem sabe?
O verão está aí, haverá sol quase todos os dias,e sempre
resta essa coisa chamada¨impulso vital. Pois esse impulso
às vezes cruel,porque não permite que nenhuma dor
insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol,
para o mar, para uma nova estrada qualquer e,de repente,
no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás
pensando algo assim como "estou contente outra vez"..."

Caio Fernando Abreu,
in Ovelha Negra

terça-feira, 6 de novembro de 2012

ETERNA MÁGOA



O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à mágoa a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Augusto dos Anjos

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A SUAVE MÃO DA TUA AUSÊNCIA



A casa está cheia de ti
... Não apenas os retratos os recantos
Os quadros
Não apenas os objectos onde
Roça ao de leve
A suave mão da tua ausência.
Mas aquela luz que trazias dentro
E deixavas de passagem
Nos seres e nas coisas.
Talvez agora mores entre as estrelas
Mas brilhas
Intensamente brilhas dentro de casa.

MANUEL ALEGRE,
in DISPERSOS E INÉDITOS -POESIA-VOL. II

domingo, 4 de novembro de 2012

VII



Fechei o livro que falava
de essências, de existências, de substâncias
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias...
Fechei o livro e abriu-se
a meus olhos o mundo.
Transposto tinha o sol já a colina;
no céu esmaltavam-se os álamos
e nasciam entre eles as estrelas;
a lua branqueava o firmamento,
cujo fulgor difuso
nas águas do rio se banhava.
E observando a lua, a colina,
as estrelas, os álamos,
o rio e o fulgor do firmamento
senti a grande mentira
de essências, de existências, de substâncias,
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias;
isto é: palavras.

Sobre o livro fechado
que jazia sobre a erva
pela lua a sua capa iluminada,
mas seu interior às escuras,
descansava uma rã
que ia rondando na sua nocturna ronda.
Oh, Kant, quanto te admiro!



Miguel de Unamuno,
in Rimas de Dentro
Tradução Rui de Almeida

sábado, 3 de novembro de 2012

PONTA SECA



Remendo o coração, como a andorinha
Remenda o ninho onde foi feliz.
Artes que o instinto sabe ou adivinha...
Mas fico a olhar depois a cicatriz.


Miguel Torga
In: Antologia Poética

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O TEATRO DAS CIDADES



Qualquer tempo é um tempo duvidoso 
assim o meu cercado de cidades 
plataformas instáveis 
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga 
que se inclina nas águas como um palco 

Paro na convergência dos estrados 
chove já sobre a raça ameaçada 
Incertas multidões em volta passam 
contemporâneas falam interpretam 
a duvidosa língua das imagens 

Assim no teatro abstracto das cidades 
morrem palavras sobre um palco náufrago 

O tempo cobre o céu que se enche de água 

Gastão Cruz,
 in "O Pianista"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

VIVER



Mas era apenas isso, 
era isso, mais nada? 
Era só a batida 
numa porta fechada? 

E ninguém respondendo, 
nenhum gesto de abrir: 
era, sem fechadura, 
uma chave perdida? 

Isso, ou menos que isso 
uma noção de porta, 
o projecto de abri-la 
sem haver outro lado? 

O projecto de escuta 
à procura de som? 
O responder que oferta 
o dom de uma recusa? 

Como viver o mundo 
em termos de esperança? 
E que palavra é essa 
que a vida não alcança? 

Carlos Drummond de Andrade,
 in 'As Impurezas do Branco'